Um passeio
Pai e filho
caminham pela areia úmida da praia. O grandão, calado, não por angústia ou
tristeza, somente uma vontade de não falar, de apenas seguir observando o céu
nublado, o mar azul próximo ao horizonte e esverdeado na zona de arrebentação.
O pequeno, com toda a curiosidade própria dos cinco anos, experimenta as
primeiras ondas de peito aberto, sob os olhos atentos do adulto.
Seguem, cada
um à sua maneira. O pai, com passos curtos, pensados, o olhar perdido. Já o
filho, correndo “praqui” e “pracolá”, abaixando-se, levantando-se, catando
coisas do chão, atirando objetos na água, perguntando o que é isso, o que é
aquilo, o porquê disso, o porquê daquilo.
- Então,
isso aqui é alga, papai? Tem certeza? Parece bicho. Outro dia você me mostrou
outra coisa e disse que era alga também, só que não era assim, parecia uma
folha...
- Existem
vários tipos de algas...
O menino
espanta-se ao ver uma infinidade de peixes mortos, espalhados pela areia. Por
essas bandas a pescaria de arrastão ainda é um hábito, um mau hábito. Peixes
miúdos e filhotes trazidos pela rede e abandonados na areia pelos
pescadores.
- Esses
peixes estão podres. Se você ficar aí vai pegar o cheiro deles...
- Por que os
peixes ficam fedendo assim?
- Porque
estão mortos.
- Todo bicho
que morre fede?
- Todos,
gente também. Por isso todo morto tem de ser enterrado.
Continuam o
passeio. O pequeno no mesmo ritmo, zanzando pra todo lado, vez em quando
pegando uma onda, descobrindo pequenos mistérios para perguntar ao pai. Param
diante de um grande bloqueio de pedras dispostas ao longo da praia. Do lado
esquerdo o barranco, logo acima, a estrada de terra. Justamente onde termina a
rua e começa a estrada de terra é que acontecera o desabamento. O mar avançara
aos poucos, sem pressa, mas com uma voracidade estupenda, desdenhando as várias
tentativas para conter a sua marcha resoluta. A estrada fora interditada
naquele trecho e o pequeno fluxo de automóveis desviado para outra estrada de
terra bem mais distante da praia. Contemplam o trabalho da natureza. O pai
lembra-se dos momentos que passou de carro junto com o filho neste mesmo
trecho. Outros tempos aqueles, quando vinham só de visita e mal o cheiro de
fumaça da cidade grande se dissipava, já estavam de volta. A água baixa que se
infiltrava lentamente por sob as pedras fora o prenúncio de uma morte
anunciada.
- Uma
estrela do mar! Será que está viva?
- Acho que
sim. Olha embaixo dela, no meio de cada uma das suas pontas tem um risco que
vai até o centro do corpo. De dentro de cada um desses riscos saem esses
pelinhos. Olha aqui, eles são os pezinhos que fazem ela andar. Vou colocar
nossa estrela na pedra e você presta atenção que ela vai andar.
- Cadê? Eu
não estou vendo nada. Será que ela morreu?
- Não, ela
anda muito devagarinho, você tem de ficar olhando e esperando, esperando e
olhando...
- Vamos
levar ela pra mamãe?
- Você
aguenta carregar?
- Só um
pouquinho.
Tomam o
caminho de volta. O pai na mesma toada e o filho agora com mais dificuldade,
tentando se equilibrar na areia molhada enquanto segura a estrela com as duas
mãos. Acaba cansando, entrega a estrela ao pai e volta a andar em ziguezagues
pela areia.
- Olha, pai,
um caranguejo!
Correndo de
lado, quase imperceptível, ele tenta fugir dos olhos curiosos do menino. Quatro
patinhas pra cá, outras quatro pra lá, dois pontinhos negro que ora sobem, ora
descem e na frente as duas presas semitransparentes prontas para o ataque. É
todo susto. O pai inicia um balé esquisito com o animalzinho, tentando evitar
sua fuga. Corre pra lá, corre pra cá, estica um braço, uma perna. O bichinho
para subitamente, patinhas laterais escorando o corpinho, olhinhos esticados no
ponto mais alto, garras abertas.
- É um
filhotinho! Filhotinho de siri é menor do que o pai dele?
- Claro,
você não é menor do que eu?
- Caranguejo
nasce de ovo ou da barriga da mãe dele que nem a gente?
O pai
vacila. Como pode o sujeito estudar tanto, viajar tanto, conhecer tantas coisas
e pessoas diferentes, desenvolver tantos projetos, conversar sobre tantas
coisas, dar respostas a tantas perguntas, receber respostas de tantas dúvidas,
viver uma vida inteira cheia de aventuras, aprender outras línguas, vivenciar
tantos costumes diferentes, se envolver com tantas pessoas, amar algumas, se
desentender com outras, corrigir erros, cometer outros erros, lutar por coisas
grandes, chorar por coisas pequenas, ajudar e ser ajudado, conquistar vitórias,
lamentar derrotas, viver tanto e tão intensamente e não ter uma resposta segura
para uma pergunta tão simples!
- Do ovo...
- Que nem
cobra e tartaruga?
- É, que nem
cobra e tartaruga...
- O siri,
papai, está fugindo! A onda vai pegar ele, ele vai pra dentro do mar...
- Não tem
problema, ele consegue viver tanto na terra quanto na água. Acho que ele é
anfíbio. Sabe o que é um anfíbio?
- (...)
- É o animal
que vive tanto na água como fora dela. Sapo é anfíbio, sabia?
- Então, meu
tio também é!
- Seu tio?
Por quê?
- Porque ele
nada muito bem. Ele chega na praia e vem correndo por cima das ondas, depois
mergulha e vai sair lá na frente, lá no fundão... E nem morre! Vamos levar a
estrela pra mamãe?
- Melhor
não. É preciso comprar uma seringa e formol na farmácia. Depois a gente tem de
injetar o formol e deixar a estrela secando no sol o dia inteiro. Dá muito
trabalho.
- Esse
negócio que põe nela com a seringa mata ela?
- Mata, e
serve pra conservar a estrela do jeitinho que ela era.
- Acho
melhor não matar ela não.
- Então ela
tem de voltar pro mar. Fica aqui enquanto eu vou lá na frente, depois das ondas
e jogo a estrela bem longe.
- Tá legal,
mas não vai muito no fundo.
O menino
observa a entrada do pai no mar agitado. Solta um gritinho a cada onda vencida
e chama por ele. Vê a água subindo e o corpo afundando Dá um suspiro. Vê o
braço levantado segurando a estrela, projetando-se para trás e lançando-a para
frente. Assiste o voo da estrela, das mãos do pai até um ponto qualquer naquele
mundão de água. Mal ela desaparece seus olhinhos ansiosos buscam o pai. Sente
um alívio ao avistá-lo voltando calmamente. A última onda bate com força e
empurra-o em direção ao filho. O homem fica surpreso ao ver a agitação da
criança, seu coraçãozinho batendo acelerado, os braços agarrando-o com força e
os olhos úmidos de quem chorou um choro abafado.
- O que foi,
meu filho?
- Eu fiquei
com medo...
- De quê?
- O senhor
não é anfíbio que nem o meu tio...
O Paulista
passa o braço em torno do filho, beija-o e caminha com ele pela areia em
direção à estrada de terra. Andam agora no mesmo passo, o menino mais aliviado,
segurando firme sua mão. As nuvens escuras vão sendo levadas pelo vento. Junto
com elas, os pensamentos sombrios do Paulista. Apenas uma pergunta continua
solta no espaço: caranguejo nasce mesmo do ovo?
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