segunda-feira, 9 de maio de 2016

Capítulo 4
















Medo

Tudo o que sei é que sou uma taruíra! Alguém aí sabe o que é uma taruíra? Pois bem, sou uma lagartixa pequena que gosta de andar nas paredes. Um bichinho bem simples: cabeça triangular, corpo alongado terminando num rabo fininho, quatro patinhas pegajosas que grudam nas paredes e pronto! Gosto de comer insetos que vivem por dentro das casas e tenho um medo danado desse bicho chamado gente. Esse aí sim, é complicado. Um nunca é igual ao outro. Taruíra não, é tudo a mesma coisa, quem viu uma já viu todas. Por causa do medo que nós todas temos dos humanos, vivemos correndo deles. Mas onde tem humano, tem comida, por isso, estamos sempre perto deles. Pra conseguir comida tudo que é bichinho que vive perambulando pelas casas dos humanos arrisca até a vida. Taruíra não é diferente. Quando a criançada está por perto, não dou as caras porque sabe como é criança, adora mexer com a gente. Uma das coisas que elas mais gostam é de arrancar nosso rabinho só pra ver o corpo correr prum lado e o rabinho ficar mexendo sem rumo, que nem cachorro danado. Não fosse só isso, bota o medo de levar uma bolada e pocar na parede igual tomate pisado! O que me trouxe aqui foi justamente o fato de encontrar nesta casa alguém que tem mais medo de mim do que eu dela. Sério! Tem uma mulher aqui que se pela de medo de tudo quanto é bichinho, inclusive de mim.

Fiquei sabendo que ela é capixaba. Foi pra São Paulo há muito tempo, casou com um paulista e teve um filhinho. Desde que casou ela tem vindo todo ano pra cá com a família. Quem contou isso foram uns antepassados da minha mãe porque eu nem era nascida. Este ano parece que eles vieram pra ficar mais tempo, acho que estão até morando de favor na casa de baixo. Como o marido passa a semana em Cachoeiro correndo atrás de emprego, a coitada é obrigada a ficar os dias às voltas com todos os bichinhos da casa. E é cada susto que ela toma! 

O que ela tem mais pavor é de barata, um bichinho tão sem graça! Está certo que é meio nojento, mas precisava tanto medo? Depois de barata vem esperança, besouro, eu, tudo que é bichinho de asa sem identificação e por aí vai... Desde que chegou aconteceram tantas histórias engraçadas, tanta gente pegando no pé dela que eu confesso até estar me sentindo solidária com ela. Só não chego mais perto pra dar apoio porque ela pode se assustar. 

Outra noite o Paulista estava no andar de cima junto com o cunhado e o Ronaldo, marido de Rosinha, assistindo um jogo de futebol quando ouviu o grito vindo do quarto de baixo. Desceu com toda a rapidez que a situação exigia. Do lado de fora a mulher, em estado de fobia pura, não parava de falar. Cada vez aumentando mais o tamanho da barata. Ele entrou no quarto, o filho dormia tranquilo na caminha do lado. Ligou a luz e lá estava ela, no alto da parede, próximo ao teto. Ele analisou a situação por alguns segundos e concluiu que o melhor seria utilizar o aerossol. Num piscar de olhos a mulher trouxe o inseticida, entregou-o ao marido e ficou observando ansiosa, agarrada na porta. Ele deu duas borrifadas precisas, esperou a barata cair e antes que ela corresse zonza pra debaixo da cama, tampou uma chinelada certeira no lombo da nojenta, mas acabou dando uma topada violenta no pé da cama, gritou e acordou o filho.

- Matou? – perguntou a mulher.

- Matou o quê? – perguntou também o filho

- Nada, menino, vai dormir, está de noite! 

- Por que meu pai tá pulando num pé só?

- Ele só deu uma topada no pé da cama, vai dormir. Matou, gordinho?

- Lógico, quase quebrei meu pé, só faltava não matar...

- Matou o quê? – insistiu o menino. 

- Eu já falei que não é nada, vai dormir!

Assim foram se passando os dias e as noites com sustos e sobressaltos da mulher, até que aconteceu o inevitável, aquilo que eu sabia estava escrito um dia ainda iria acontecer. Era uma tarde quente e sufocante. De tanto comer bichinhos pra diminuir os suplícios da minha nova amiga eu fiquei um pouco cheinha. Com o abafado do dia decidi procurar um lugar mais fresco e estava exatamente subindo a escada que leva ao andar de cima quando dei de cara com ela que vinha descendo com um balde de roupas na mão. Tentei correr pra não ser vista, porém, minhas perninhas escorregaram no piso liso de granito e o máximo que consegui foi me aproximar dela. Quando me viu, ficou branca, arregalou os olhos, gritou, mas ninguém ouviu.


Daria tudo pra poder ser gente naquele momento e dizer pra ela não ter medo porque éramos amigas. Paralisada e cheia de chiliques ela ficava repetindo baixinho “uma taruíra, uma taruíra...” e nada mais acontecia porque eu também estava com receio de me mover. Foi quando ela ouviu um barulho de queda lá fora e, em seguida, o choro do filho. “A bicicleta!!...”, pensou alto. Era o que faltava pra tirar a minha amiga da sua inércia. O amor de mãe falou mais alto do que o medo de uma desprezível taruirazinha. Foi aí que eu senti a dor da primeira chinelada que tomei na vida. Ainda estonteada pela pancada olhei pra trás e vi duas coisas curiosas: a mulher do Paulista finalmente liberta da sua fobia correndo pra acudir o filho, e o meu rabinho solto, procurando o resto de mim.

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