Medo
Tudo o que
sei é que sou uma taruíra! Alguém aí sabe o que é uma taruíra? Pois bem, sou
uma lagartixa pequena que gosta de andar nas paredes. Um bichinho bem simples:
cabeça triangular, corpo alongado terminando num rabo fininho, quatro patinhas
pegajosas que grudam nas paredes e pronto! Gosto de comer insetos que vivem por
dentro das casas e tenho um medo danado desse bicho chamado gente. Esse aí sim,
é complicado. Um nunca é igual ao outro. Taruíra não, é tudo a mesma coisa,
quem viu uma já viu todas. Por causa do medo que nós todas temos dos humanos,
vivemos correndo deles. Mas onde tem humano, tem comida, por isso, estamos
sempre perto deles. Pra conseguir comida tudo que é bichinho que vive
perambulando pelas casas dos humanos arrisca até a vida. Taruíra não é
diferente. Quando a criançada está por perto, não dou as caras porque sabe como
é criança, adora mexer com a gente. Uma das coisas que elas mais gostam é de
arrancar nosso rabinho só pra ver o corpo correr prum lado e o rabinho ficar
mexendo sem rumo, que nem cachorro danado. Não fosse só isso, bota o medo de
levar uma bolada e pocar na parede igual tomate pisado! O que me trouxe aqui
foi justamente o fato de encontrar nesta casa alguém que tem mais medo de mim
do que eu dela. Sério! Tem uma mulher aqui que se pela de medo de tudo quanto é
bichinho, inclusive de mim.
Fiquei
sabendo que ela é capixaba. Foi pra São Paulo há muito tempo, casou com um
paulista e teve um filhinho. Desde que casou ela tem vindo todo ano pra cá com
a família. Quem contou isso foram uns antepassados da minha mãe porque eu nem
era nascida. Este ano parece que eles vieram pra ficar mais tempo, acho
que estão até morando de favor na casa de baixo. Como o marido passa a semana
em Cachoeiro correndo atrás de emprego, a coitada é obrigada a ficar os dias às
voltas com todos os bichinhos da casa. E é cada susto que ela toma!
O que ela
tem mais pavor é de barata, um bichinho tão sem graça! Está certo que é meio
nojento, mas precisava tanto medo? Depois de barata vem esperança, besouro, eu,
tudo que é bichinho de asa sem identificação e por aí vai... Desde que chegou
aconteceram tantas histórias engraçadas, tanta gente pegando no pé dela que eu
confesso até estar me sentindo solidária com ela. Só não chego mais perto pra
dar apoio porque ela pode se assustar.
Outra noite
o Paulista estava no andar de cima junto com o cunhado e o Ronaldo, marido de
Rosinha, assistindo um jogo de futebol quando ouviu o grito vindo do quarto de
baixo. Desceu com toda a rapidez que a situação exigia. Do lado de fora a
mulher, em estado de fobia pura, não parava de falar. Cada vez aumentando mais
o tamanho da barata. Ele entrou no quarto, o filho dormia tranquilo na caminha
do lado. Ligou a luz e lá estava ela, no alto da parede, próximo ao teto. Ele
analisou a situação por alguns segundos e concluiu que o melhor seria utilizar
o aerossol. Num piscar de olhos a mulher trouxe o inseticida, entregou-o ao
marido e ficou observando ansiosa, agarrada na porta. Ele deu duas borrifadas
precisas, esperou a barata cair e antes que ela corresse zonza pra debaixo da
cama, tampou uma chinelada certeira no lombo da nojenta, mas acabou dando uma
topada violenta no pé da cama, gritou e acordou o filho.
- Matou? –
perguntou a mulher.
- Matou o
quê? – perguntou também o filho
- Nada,
menino, vai dormir, está de noite!
- Por que
meu pai tá pulando num pé só?
- Ele só deu
uma topada no pé da cama, vai dormir. Matou, gordinho?
- Lógico,
quase quebrei meu pé, só faltava não matar...
- Matou o
quê? – insistiu o menino.
- Eu já
falei que não é nada, vai dormir!
Assim foram
se passando os dias e as noites com sustos e sobressaltos da mulher, até que
aconteceu o inevitável, aquilo que eu sabia estava escrito um dia ainda iria
acontecer. Era uma tarde quente e sufocante. De tanto comer bichinhos pra
diminuir os suplícios da minha nova amiga eu fiquei um pouco cheinha. Com o
abafado do dia decidi procurar um lugar mais fresco e estava exatamente subindo
a escada que leva ao andar de cima quando dei de cara com ela que vinha
descendo com um balde de roupas na mão. Tentei correr pra não ser vista, porém,
minhas perninhas escorregaram no piso liso de granito e o máximo que consegui
foi me aproximar dela. Quando me viu, ficou branca, arregalou os olhos, gritou,
mas ninguém ouviu.
Daria tudo
pra poder ser gente naquele momento e dizer pra ela não ter medo porque éramos
amigas. Paralisada e cheia de chiliques ela ficava repetindo baixinho “uma
taruíra, uma taruíra...” e nada mais acontecia porque eu também estava com
receio de me mover. Foi quando ela ouviu um barulho de queda lá fora e, em
seguida, o choro do filho. “A bicicleta!!...”, pensou alto. Era o que faltava
pra tirar a minha amiga da sua inércia. O amor de mãe falou mais alto do que o
medo de uma desprezível taruirazinha. Foi aí que eu senti a dor da primeira
chinelada que tomei na vida. Ainda estonteada pela pancada olhei pra trás e vi
duas coisas curiosas: a mulher do Paulista finalmente liberta da sua fobia
correndo pra acudir o filho, e o meu rabinho solto, procurando o resto de mim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário