segunda-feira, 9 de maio de 2016

Prefácio























Há quem diga que o bom livro é aquele que alia ao seu valor estético uma utilidade, um comentário, ao menos, sobre as questões que nos afligem. O lazer de mãos dadas com o aprender, poesia de braços com serventia. Quer-se, enfim, que ele nos traga alguma orientação, seja para a vida prática, seja para vida emocional. Se você, leitor, compartilha dessa opinião, vai apreciar o livro que tem diante de si.

“O mergulho do paulista” espelha o tempo presente desde o nascimento. Ele só existe, aliás, por causa de um golpe cada vez mais comum à nossa experiência: o desemprego. Como reagir diante de sua chegada? Como sempre não há resposta, mas respostas. Uns se recusam a aceitar o fato e tentam, de todas as maneiras, refazer a vida nas condições anteriores. Outros, percebendo que o reingresso no mercado é quase impossível, deixam as metrópoles para ir à busca do desconhecido. Foi o caso do autor. A distância geográfica e espiritual que separa São Paulo de Marataízes dá a medida de sua viagem.

Não pense, porém, que as páginas adiante trarão digressões melancólicas ou uma forma subliminar de exaltação das próprias virtudes. Não. Ao mesmo tempo em que divide conosco sua história, Paulo Araujo tem o cuidado de fazê-la contar-se através de seus novos companheiros. Ao assumir o papel de espectador, ou aprendiz, desaparece para se fazer mostrar. É um acerto. Além de nos oferecer um retrato social rico em ângulo, foco e contraste, poupa-nos do derramamento emocional que é a ruína de muitos projetos.

Misto de autobiografia e crônica do cotidiano, “O mergulho do paulista” principia em desalento, cresce conciliador e termina estimulante. Por trás dos temores do recomeço, pode haver descobertas capazes de fazer de nós pessoas melhores. Os que esperam algo parecido da vida terão uma boa leitura pela frente.

Marcus Aurelius Pimenta

Jornalista e escritor

Introdução

De outubro de 2002 a janeiro de 2003, o Paulista viveu uma situação inédita e desconcertante. Pego de surpresa pela crise mundial pós 11 de setembro de 2001, perdeu o emprego como executivo de uma multinacional, em São Paulo. Perdeu um pouco também do controle da sua vida. As tentativas de retorno ao mercado foram todas infrutíferas, tanto que ele, a esposa e o filho pequeno deixaram a capital paulista rumo ao Espírito Santo.

Como ele mesmo diz, caiu de paraquedas em Marataízes, mais precisamente no Bairro do Juá. Ali, conviveu com pessoas simples, ouviu várias histórias e participou de algumas delas. Como tinha pouca opção para passar o tempo, sem computador, sem emprego e sem perspectivas imediatas de encontrá-lo, prestava bastante atenção em tudo que acontecia à sua volta e depois anotava em folhas avulsas de papel, até mesmo em guardanapos de quiosques.

Reuniu esses escritos que misturavam realidade com pitadas de ficção e começou a rascunhar um livro. Depois de muitas idas e vindas, resolveu editá-lo e colocá-lo na internet. Juntou ilustrações feitas toscamente à lápis para manter a mesma atmosfera dos textos. O resultado está aqui à disposição de todos, inclusive daqueles que aparecem na trama e nos “causos”, com nomes fictícios. Quem viveu algumas das situações expostas certamente se lembrará e também identificará outras personagens de Marataízes e de Cachoeiro de Itapemirim.



Marataízes
Humaníssima Trindade

Paulista, Paulo Araujo e Paulí

Capítulo 1

















A chegada

1999, último Natal antes do bug do milênio. Chove como nunca na madrugada escura do bairro do Juá. Um zunido de cantorias e de gente falando ao mesmo tempo abafa o som enfraquecido de um velho caminhão. Na varanda do último andar um vulto solitário assiste o desenrolar da confusa mudança. Gritos contidos, buzina desafinada, batuques e o som inconfundível de uma infinidade de crianças...

- Acorda Véio! 

O grito vem da boleia do caminhão. Na cabine estreita três ou quatro pessoas espremem-se umas contra as outras e todas contra o motorista suado e agarrado ao volante, tentando dirigir sem cair da cabine. Calmamente o caminhão passa rangendo sob a varanda e para em frente a uma casa humilde, portãozinho quase caindo, muro sem reboque. Segurando um inútil guarda-chuva e trajando apenas um calção preto, o Véio espera pacientemente o apagar do motor para iniciar o rápido ajeitamento da parentalha. 

Da varanda, a única testemunha ocular da balbúrdia tenta acompanhar todos os movimentos do desembarque dos novos vizinhos. Minutos que ficarão gravados para sempre como uma pequena lição de vida, de desprendimento e felicidade incomensuráveis diante de tão pouco. Correm aparentemente a esmo sob a chuva, cumprimentam-se, matam antigas saudades, agarram objetos e crianças de colo, carregam travessas de camas, caixas, gavetas e sacos. Orientados pelo Véio, uns entram na casa vizinha enquanto outros atravessam o quintal de mato recém aparado por uma trilha tortuosa que leva a um barraco de um cômodo só, com uma porta lateral e duas janelas na parede mais extensa, exatamente de frente para o sobrado amarelo. 

Apenas dois ou três homens permanecem no terreiro, improvisando janelas e portas para o barraco. O restante já se espalhou e ocupa agora todos os espaços das duas moradias. Dentro do barraco, como por encanto, surge a luz de uma lâmpada pendurada no teto por dois fios entrelaçados. Nada mais falta para chamá-lo de lar. Solitário, o motorista recolhe lonas, cordas e pedaços de madeira. Ajeita tudo sem muita pressa e, com muito cuidado, entra na cabine. Fecha a porta descorada e repleta de pontos de ferrugem. Gira a chave e o ronco áspero do motor corta a madrugada chuvosa.

- O Gigante! A gente esqueceu do Gigante!

O motorista aborta a partida prontamente e espia o homem correndo aos berros. Esquecido num canto da carroceria, próximo à boleia, com o corpinho negro encharcado e os olhos conformados de quem já não se espanta com nada, Gigante segura-se cuidadosamente na grade de madeira. O homem estende os braços em sua direção. Com uma habilidade inesperada o anão salta e é colocado no chão enlameado com uma delicadeza quase fraternal. Por fim o caminhão dá a partida e toma o rumo da estrada de terra, deixando para trás as ruas e esquinas esburacadas e enlameadas do bairro do Juá.


Do alto da sacada, Rosinha ainda avista-os caminhando de mãos dadas até a entrada do barraco. Entram e juntam-se aos demais para entoar as primeiras orações natalinas em volta da pequena mesa, sob a tênue luz da única lâmpada do pequeno lar improvisado.

Capítulo 2















A partida

Outubro de 2002, seis e meia da noite, estação rodoviária de São Paulo. Lentamente o motorista fecha a porta do ônibus com destino a Cachoeiro de Itapemirim. Quieto, olhos atentos na janela, o Paulista contempla mais uma vez, talvez a última, o trânsito pesado da marginal. Na poltrona da frente, Susana, sua esposa, acaricia o rosto adormecido do filho. O Paulista lembra quando eles, ainda noivos, fizeram esta mesma viagem há onze anos atrás. Situação bem diferente agora. Só Deus sabe se haverá volta.

O ônibus da Itapemirim destaca-se na infinidade de veículos, meio que parado, meio que andando, na ânsia de abandonar de vez a cidade. Melancólico, o Paulista espia através do vidro as luzes refletidas nas águas impuras do Tietê e sente que daqui a pouco a cidade ficará para trás, assim como seus parentes, amigos e vizinhos. O ônibus desvencilha-se do trânsito modorrento, ganha velocidade e foge feito cavalo selvagem no asfalto escuro da Via Dutra. São Paulo desaparece e com ela muitos sonhos e planos do Paulista. 

Setembro de 2001. Na mesma semana em que as torres gêmeas de Nova York desabaram, ele perdeu o emprego. Assimilou o golpe no primeiro momento e jogou fora o mau presságio. Não passava de um fato isolado, assim como a iminência de uma guerra, a decadência da Argentina, o aumento do desemprego, o estouro da bolha da Internet, a crise da globalização, a ameaça do terrorismo internacional, e todos os maus indícios daquele final de ano. Peças distantes de vários quebra-cabeças que se juntavam e formavam uma barreira no meio do caminho da humanidade.
Bela hora para perder o emprego! No auge da carreira, executivo de uma multinacional, viajando mundo afora num ritmo alucinante. Em pouco mais de dois anos conhecera países e culturas diferentes. Envolto em novas tecnologias, experimentara um mundo novo, cibernético. Notebook pra cá, notebook pra lá, aparelho celular, internet móvel, agendas eletrônicas, viagens, viagens e mais viagens...

Quando tudo acabou ele se viu só com sua família e uma imensa incerteza pela frente. No lugar do notebook, classificados de empregos; no lugar das viagens, envios de currículos; no lugar do mundo cibernético, o ônibus lotado da Itapemirim; no lugar de Miami, Marataízes... 

É preciso mudar nossos paradigmas! - qualquer headhunter de esquina pregava esta máxima como uma verdade absoluta, não só ela como muitas outras, e aí o mundo ficou complicado demais, rápido demais, com gurus demais... O ônibus solitário corta a estrada. Mesmo com as janelas fechadas ele imagina o cheiro de mato, de terra, de bosta de vaca. Quer melhor mudança de paradigmas?


Pega no sono um tiquinho, o suficiente para não ver o dia nascendo. Finalmente entram no Espírito Santo. Na cabeça do Paulista um festival de pensamentos desencontrados. Nada de apartamento, carro, shopping center, muito menos trabalho. Até quando? Jamais imaginara que um dia estaria tentando se reencontrar tão longe de casa, tão no Espírito Santo... 

Mimoso do Sul, última parada antes de Cachoeiro. Agitação dentro do ônibus, gente acordando, gente descendo. Respira fundo e prepara coração e mente para os novos rumos da vida. Da complexidade para a simplicidade, da incerteza para a esperança. A Itabira finalmente aparece, junto com o sol e o calor capixabas. Desembarcam em Cachoeiro e no dia seguinte pegam a estrada rumo ao mar.

Marataízes, cidade litorânea do sul do Espírito Santo, famosa por atrair mineiros às suas praias outrora de rara beleza e hoje prejudicadas pelo avanço inexorável do mar. Um bairro, uma rua de nome incerto, um caminho de terra sem calçadas, mato comendo pelas bordas, poças d’água. Quase nenhuma casa, a maioria de mineiros ainda fiéis. Um sobrado de três andares, discretamente pintado de amarelo, janelas e portas azuis e um grande portão de madeira, também azul. Deserto no inverno e cheio de vida no verão, assim é o Bairro do Juá. Tal qual um paraquedista desgovernado ele caiu, exatamente ali. O executivo paulista largou sua gravata em cima de um barco e começou seu exílio.




Capítulo 3




















Um passeio

Pai e filho caminham pela areia úmida da praia. O grandão, calado, não por angústia ou tristeza, somente uma vontade de não falar, de apenas seguir observando o céu nublado, o mar azul próximo ao horizonte e esverdeado na zona de arrebentação. O pequeno, com toda a curiosidade própria dos cinco anos, experimenta as primeiras ondas de peito aberto, sob os olhos atentos do adulto. 

Seguem, cada um à sua maneira. O pai, com passos curtos, pensados, o olhar perdido. Já o filho, correndo “praqui” e “pracolá”, abaixando-se, levantando-se, catando coisas do chão, atirando objetos na água, perguntando o que é isso, o que é aquilo, o porquê disso, o porquê daquilo.

- Então, isso aqui é alga, papai? Tem certeza? Parece bicho. Outro dia você me mostrou outra coisa e disse que era alga também, só que não era assim, parecia uma folha...

- Existem vários tipos de algas...

O menino espanta-se ao ver uma infinidade de peixes mortos, espalhados pela areia. Por essas bandas a pescaria de arrastão ainda é um hábito, um mau hábito. Peixes miúdos e filhotes trazidos pela rede e abandonados na areia pelos pescadores. 

- Esses peixes estão podres. Se você ficar aí vai pegar o cheiro deles...

- Por que os peixes ficam fedendo assim?

- Porque estão mortos. 

- Todo bicho que morre fede?

- Todos, gente também. Por isso todo morto tem de ser enterrado.

Continuam o passeio. O pequeno no mesmo ritmo, zanzando pra todo lado, vez em quando pegando uma onda, descobrindo pequenos mistérios para perguntar ao pai. Param diante de um grande bloqueio de pedras dispostas ao longo da praia. Do lado esquerdo o barranco, logo acima, a estrada de terra. Justamente onde termina a rua e começa a estrada de terra é que acontecera o desabamento. O mar avançara aos poucos, sem pressa, mas com uma voracidade estupenda, desdenhando as várias tentativas para conter a sua marcha resoluta. A estrada fora interditada naquele trecho e o pequeno fluxo de automóveis desviado para outra estrada de terra bem mais distante da praia. Contemplam o trabalho da natureza. O pai lembra-se dos momentos que passou de carro junto com o filho neste mesmo trecho. Outros tempos aqueles, quando vinham só de visita e mal o cheiro de fumaça da cidade grande se dissipava, já estavam de volta. A água baixa que se infiltrava lentamente por sob as pedras fora o prenúncio de uma morte anunciada.

- Uma estrela do mar! Será que está viva?

- Acho que sim. Olha embaixo dela, no meio de cada uma das suas pontas tem um risco que vai até o centro do corpo. De dentro de cada um desses riscos saem esses pelinhos. Olha aqui, eles são os pezinhos que fazem ela andar. Vou colocar nossa estrela na pedra e você presta atenção que ela vai andar.

- Cadê? Eu não estou vendo nada. Será que ela morreu?

- Não, ela anda muito devagarinho, você tem de ficar olhando e esperando, esperando e olhando...

- Vamos levar ela pra mamãe?

- Você aguenta carregar?

- Só um pouquinho.

Tomam o caminho de volta. O pai na mesma toada e o filho agora com mais dificuldade, tentando se equilibrar na areia molhada enquanto segura a estrela com as duas mãos. Acaba cansando, entrega a estrela ao pai e volta a andar em ziguezagues pela areia.

- Olha, pai, um caranguejo!

Correndo de lado, quase imperceptível, ele tenta fugir dos olhos curiosos do menino. Quatro patinhas pra cá, outras quatro pra lá, dois pontinhos negro que ora sobem, ora descem e na frente as duas presas semitransparentes prontas para o ataque. É todo susto. O pai inicia um balé esquisito com o animalzinho, tentando evitar sua fuga. Corre pra lá, corre pra cá, estica um braço, uma perna. O bichinho para subitamente, patinhas laterais escorando o corpinho, olhinhos esticados no ponto mais alto, garras abertas.

- É um filhotinho! Filhotinho de siri é menor do que o pai dele?

- Claro, você não é menor do que eu?

- Caranguejo nasce de ovo ou da barriga da mãe dele que nem a gente?

O pai vacila. Como pode o sujeito estudar tanto, viajar tanto, conhecer tantas coisas e pessoas diferentes, desenvolver tantos projetos, conversar sobre tantas coisas, dar respostas a tantas perguntas, receber respostas de tantas dúvidas, viver uma vida inteira cheia de aventuras, aprender outras línguas, vivenciar tantos costumes diferentes, se envolver com tantas pessoas, amar algumas, se desentender com outras, corrigir erros, cometer outros erros, lutar por coisas grandes, chorar por coisas pequenas, ajudar e ser ajudado, conquistar vitórias, lamentar derrotas, viver tanto e tão intensamente e não ter uma resposta segura para uma pergunta tão simples!

- Do ovo...

- Que nem cobra e tartaruga?

- É, que nem cobra e tartaruga...

- O siri, papai, está fugindo! A onda vai pegar ele, ele vai pra dentro do mar...

- Não tem problema, ele consegue viver tanto na terra quanto na água. Acho que ele é anfíbio. Sabe o que é um anfíbio?

- (...)

- É o animal que vive tanto na água como fora dela. Sapo é anfíbio, sabia?

- Então, meu tio também é!

- Seu tio? Por quê?

- Porque ele nada muito bem. Ele chega na praia e vem correndo por cima das ondas, depois mergulha e vai sair lá na frente, lá no fundão... E nem morre! Vamos levar a estrela pra mamãe?

- Melhor não. É preciso comprar uma seringa e formol na farmácia. Depois a gente tem de injetar o formol e deixar a estrela secando no sol o dia inteiro. Dá muito trabalho.

- Esse negócio que põe nela com a seringa mata ela?

- Mata, e serve pra conservar a estrela do jeitinho que ela era.

- Acho melhor não matar ela não.

- Então ela tem de voltar pro mar. Fica aqui enquanto eu vou lá na frente, depois das ondas e jogo a estrela bem longe.

- Tá legal, mas não vai muito no fundo.

O menino observa a entrada do pai no mar agitado. Solta um gritinho a cada onda vencida e chama por ele. Vê a água subindo e o corpo afundando Dá um suspiro. Vê o braço levantado segurando a estrela, projetando-se para trás e lançando-a para frente. Assiste o voo da estrela, das mãos do pai até um ponto qualquer naquele mundão de água. Mal ela desaparece seus olhinhos ansiosos buscam o pai. Sente um alívio ao avistá-lo voltando calmamente. A última onda bate com força e empurra-o em direção ao filho. O homem fica surpreso ao ver a agitação da criança, seu coraçãozinho batendo acelerado, os braços agarrando-o com força e os olhos úmidos de quem chorou um choro abafado.

- O que foi, meu filho? 

- Eu fiquei com medo... 

- De quê?

- O senhor não é anfíbio que nem o meu tio...

O Paulista passa o braço em torno do filho, beija-o e caminha com ele pela areia em direção à estrada de terra. Andam agora no mesmo passo, o menino mais aliviado, segurando firme sua mão. As nuvens escuras vão sendo levadas pelo vento. Junto com elas, os pensamentos sombrios do Paulista. Apenas uma pergunta continua solta no espaço: caranguejo nasce mesmo do ovo?

Capítulo 4
















Medo

Tudo o que sei é que sou uma taruíra! Alguém aí sabe o que é uma taruíra? Pois bem, sou uma lagartixa pequena que gosta de andar nas paredes. Um bichinho bem simples: cabeça triangular, corpo alongado terminando num rabo fininho, quatro patinhas pegajosas que grudam nas paredes e pronto! Gosto de comer insetos que vivem por dentro das casas e tenho um medo danado desse bicho chamado gente. Esse aí sim, é complicado. Um nunca é igual ao outro. Taruíra não, é tudo a mesma coisa, quem viu uma já viu todas. Por causa do medo que nós todas temos dos humanos, vivemos correndo deles. Mas onde tem humano, tem comida, por isso, estamos sempre perto deles. Pra conseguir comida tudo que é bichinho que vive perambulando pelas casas dos humanos arrisca até a vida. Taruíra não é diferente. Quando a criançada está por perto, não dou as caras porque sabe como é criança, adora mexer com a gente. Uma das coisas que elas mais gostam é de arrancar nosso rabinho só pra ver o corpo correr prum lado e o rabinho ficar mexendo sem rumo, que nem cachorro danado. Não fosse só isso, bota o medo de levar uma bolada e pocar na parede igual tomate pisado! O que me trouxe aqui foi justamente o fato de encontrar nesta casa alguém que tem mais medo de mim do que eu dela. Sério! Tem uma mulher aqui que se pela de medo de tudo quanto é bichinho, inclusive de mim.

Fiquei sabendo que ela é capixaba. Foi pra São Paulo há muito tempo, casou com um paulista e teve um filhinho. Desde que casou ela tem vindo todo ano pra cá com a família. Quem contou isso foram uns antepassados da minha mãe porque eu nem era nascida. Este ano parece que eles vieram pra ficar mais tempo, acho que estão até morando de favor na casa de baixo. Como o marido passa a semana em Cachoeiro correndo atrás de emprego, a coitada é obrigada a ficar os dias às voltas com todos os bichinhos da casa. E é cada susto que ela toma! 

O que ela tem mais pavor é de barata, um bichinho tão sem graça! Está certo que é meio nojento, mas precisava tanto medo? Depois de barata vem esperança, besouro, eu, tudo que é bichinho de asa sem identificação e por aí vai... Desde que chegou aconteceram tantas histórias engraçadas, tanta gente pegando no pé dela que eu confesso até estar me sentindo solidária com ela. Só não chego mais perto pra dar apoio porque ela pode se assustar. 

Outra noite o Paulista estava no andar de cima junto com o cunhado e o Ronaldo, marido de Rosinha, assistindo um jogo de futebol quando ouviu o grito vindo do quarto de baixo. Desceu com toda a rapidez que a situação exigia. Do lado de fora a mulher, em estado de fobia pura, não parava de falar. Cada vez aumentando mais o tamanho da barata. Ele entrou no quarto, o filho dormia tranquilo na caminha do lado. Ligou a luz e lá estava ela, no alto da parede, próximo ao teto. Ele analisou a situação por alguns segundos e concluiu que o melhor seria utilizar o aerossol. Num piscar de olhos a mulher trouxe o inseticida, entregou-o ao marido e ficou observando ansiosa, agarrada na porta. Ele deu duas borrifadas precisas, esperou a barata cair e antes que ela corresse zonza pra debaixo da cama, tampou uma chinelada certeira no lombo da nojenta, mas acabou dando uma topada violenta no pé da cama, gritou e acordou o filho.

- Matou? – perguntou a mulher.

- Matou o quê? – perguntou também o filho

- Nada, menino, vai dormir, está de noite! 

- Por que meu pai tá pulando num pé só?

- Ele só deu uma topada no pé da cama, vai dormir. Matou, gordinho?

- Lógico, quase quebrei meu pé, só faltava não matar...

- Matou o quê? – insistiu o menino. 

- Eu já falei que não é nada, vai dormir!

Assim foram se passando os dias e as noites com sustos e sobressaltos da mulher, até que aconteceu o inevitável, aquilo que eu sabia estava escrito um dia ainda iria acontecer. Era uma tarde quente e sufocante. De tanto comer bichinhos pra diminuir os suplícios da minha nova amiga eu fiquei um pouco cheinha. Com o abafado do dia decidi procurar um lugar mais fresco e estava exatamente subindo a escada que leva ao andar de cima quando dei de cara com ela que vinha descendo com um balde de roupas na mão. Tentei correr pra não ser vista, porém, minhas perninhas escorregaram no piso liso de granito e o máximo que consegui foi me aproximar dela. Quando me viu, ficou branca, arregalou os olhos, gritou, mas ninguém ouviu.


Daria tudo pra poder ser gente naquele momento e dizer pra ela não ter medo porque éramos amigas. Paralisada e cheia de chiliques ela ficava repetindo baixinho “uma taruíra, uma taruíra...” e nada mais acontecia porque eu também estava com receio de me mover. Foi quando ela ouviu um barulho de queda lá fora e, em seguida, o choro do filho. “A bicicleta!!...”, pensou alto. Era o que faltava pra tirar a minha amiga da sua inércia. O amor de mãe falou mais alto do que o medo de uma desprezível taruirazinha. Foi aí que eu senti a dor da primeira chinelada que tomei na vida. Ainda estonteada pela pancada olhei pra trás e vi duas coisas curiosas: a mulher do Paulista finalmente liberta da sua fobia correndo pra acudir o filho, e o meu rabinho solto, procurando o resto de mim.

Capítulo 5

















Na sombra da castanheira 

Em frente à casa do Véio tem uma castanheira. Com sua sombra acolhedora ela é parada obrigatória para quem caminha pelas ruas de terra sob o sol quente do litoral. Isso acaba até virando desculpa pra todo mundo se encostar ali e ouvir as histórias do Véio. Munido do seu banquinho de madeira ele se ajeita assim como quem não quer nada a não ser esperar o tempo passar. Sentado num pequeno banco de madeira ele vigia as crianças enquanto elas brincam, cumprimenta os vizinhos que passam de volta da praia e é claro, proseia com aqueles que param. Os assuntos são os mais variados. Quando percebe que a conversa vai tomando corpo e mais pessoas vão se aproximando ele corre até a sala e volta com um banco maior, daqueles que antigamente acomodavam os famosos televisinhos. As pessoas chegam, sentam-se e puxam conversa. Os mais apressados dão lugar a outros num rodízio sereno, enquanto alguns fincam a bunda na madeira e dali só saem tarde da noite. 

Naquela tarde, ele e a Jacira, a irmã do Gigante, travavam uma conversa familiar cujo tema era a geladeira quebrada e a hipótese de não se efetuar o conserto a tempo para a ceia de Natal. Justamente quando o Véio estava dizendo para ela deixar a geladeira por conta do Ferrugem, chegaram Susana e o Paulista. Veterana na arte de pegar o fio da meada em qualquer conversa, Susana já chegou tomando parte na discussão.

- Geladeira enferrujada, Jacira? Maresia... 

- Que maresia, que enferrujada, mulher? 

- Por que esse espanto, Véio? Não foi você mesmo que falou que a geladeira dela está enferrujada? Está ficando doido?

- Filhinha do céu, eu estava falando do Ferrugem, um amigo nosso que é técnico, conserta televisão, rádio, fogão, geladeira, tudo... A gente chama ele assim por causa que ele tem uma carinha desbotada, de tanto tomar sol.

- Quer dizer que você está aí todo folgado só porque sua mulher está viajando? - Pergunta Susana, com aquele jeito que só ela tem de mudar de assunto instantaneamente - Já arrumou a casa? Amanhã cedinho ela chega e se tiver tudo bagunçado o couro vai comer, que eu sei que ela é brava...

- Ela tem o jeito dela de arrumar, se eu fizer do meu jeito quando ela chegar ela desfaz tudo e faz do jeito dela! Aí são dois trabalhos. Outro dia ela tava fazendo um serviço que não precisava... Pra quê apanhar lenha se o fogão da gente é a gás?! Ela é muito trabalhadeira, é verdade, só que ela não para nunca. Quando não tem mais serviço, ela inventa. Eu ajudo no que tem precisão, se não tem necessidade pra quê o trabalho?!

Alheios à conversa, os meninos brincam animados. Valtinho e Caíque, netos do Véio, mais o Edinho, neto da Jacira manuseiam plantas, vidros e pedras. Guilherme, filho do Paulista, e Rafael, outro neto do Véio, puxam carrinhos de plásticos presos com barbantes. Logo o Véio trata de botar reparo na brincadeira dos netos. Com uma pedra eles amassam um punhado de flores apanhadas no quintal. Depois de bem amassadas eles jogam a pasta obtida dentro de um vidro grande cheio de água.

- Que é que vocês tão fazendo aí, Caíque?

- Um remédio.

- Remédio pra quê?

- Não sei...

- Ué, se não sabe, pra que está tendo todo esse trabalho? Olha só, gente, tem dia que eles passam a tarde toda fazendo esses remédios. Diz que é pra matar formiga, marimbondo... Têm um trabalho danado, depois jogam tudo fora. Bicho engraçado é menino, olha ali aqueles dois brincando com aqueles carrinhos velhos, passando com eles nas poças d’água. Óia só que felicidade! Depois que os brinquedos ficam velhos aí é que eles agarram a brincar com gosto...

Satisfeito, o Paulista observa seu filho feliz, pisando na lama. Nem parece aquele menino que chegou de São Paulo com receio de andar descalço, correndo de cabeça baixa, machucando os pezinhos nas pedrinhas da rua. Pensando por esse lado, até que não foi um mau negócio pra ele.

- Véio, que formigas são essas aí embaixo do seu pé? – pergunta a mulher do Paulista. 

- São paraguaia...

- Paraguaia? Por quê?

- Porque elas não morde não...

- Mas aquelas que ficam ali na grama mordem sim. Outro dia pegaram o pé do Guilherme, ainda bem que eu estava com a mangueira e joguei água nelas. Aquelas lá são formiga quente.

- Isso mesmo, essas quente aí são brava, morde que só...

- Tem cobra nesse mato, Véio?

- Aí tem a druminhoca, tudo quietinha, por trás da moita, esperando você passar, armando o bote. Se ela não te pegar na ida, pega na volta. Quanta gente já foi picada aí nesse mato, sem nem perceber!

- E o veneno dela mata?

- Depende. Se o sujeito não ver, ele sente só um formigão na pernas e nem faz causo, no dia seguinte já está melhor. Agora, se o sujeito vê a druminhoca picando ele, logo ele se apavora e faz o sangue correr mais rápido nas veias e se espalhar no corpo. Se não for acudido rápido pode morrer sim.

- Está vendo, gordinho, por isso eu vivo falando pro Guilherme não entrar no mato! Nossa, mas tem muito bicho aqui, né Véio? Por que tinha que juntar tanto bicho dentro de casa? É taruíra, esperança, besouro, barata... Eu tenho horror de barata!

- Mas uma mulherona dessas com medo duns bichinhos que não faz mal nenhum!

- O que eu não suporto mesmo é barata, bicho nojento!

- Filhinha de Deus, você não tem vergonha de ter um medo tão grande desses?

- Vergonha por quê? Me diz se o senhor conhece alguma mulher que não tem pavor de barata? 

- Você sabia que por aqui tem muito morcego? Aí mesmo na casa de vocês costumava dá muito, eles faziam ninho aí. Ronaldo ficava doido, metia o pau pra riba deles... Vez em quando descia cada um bitelão voando louco pelo vão da parede. Vocês sabem que os morcegos sai tudo de noite por essas mata aí pra comer? Eles gostam que só vendo de comer umas frutinhas que dá aí por dentro. Antes de amanhecer eles voltam tudo pros teto das casa aqui e passa o dia dormindo, tudinho de ponta cabeça, dormindo e cagando todas as frutinhas que eles comeram. O chão fica uma porcaiada danada. Agora acabou, não sei o que o Ronaldo fez, mas eles não apareceram mais por aqui.


A conversa continua pela tarde afora, Susana lembra que é noite de lua cheia e chama o filho pra ir ver a lua nascer lá na praia. A molecada toda vai trás como numa procissão. O Véio continua sentado no banco proseando, contando seus causos e ouvindo histórias, algumas fantásticas, outras banais. O que nunca falta é gente pra conversar durante o verão. Quando termina o rodízio de vizinhos e conhecidos ele bota o banco nas costas e volta pra casa. A castanheira, então, passa a ser dos passarinhos e de alguns morcegos perdidos...