A solidão do Gigante
- O que será que pensa o Gigante? - pergunta a mulher do Paulista,
sem esperar resposta. - O que será que passa naquela cabecinha durante
todo o tempo que ele fica sentado ali embaixo da varanda, com as perninhas
cruzadas, fumando e olhando as crianças brincando? Tanto tempo andando pra lá e
pra cá, fitando o mar sem poder cair na água, sem ninguém pra conversar. Deve
sentir uma solidão muito grande. Tadinho do pequeno, tão só, não é gordinho?
Susana muda
de assunto ao perceber que o Paulista não sente vontade de conversar sobre
anões. Falam do mar, da vida deles ali, do filho, do futuro, do amor... Susana
desliga-se por uns momentos do anãozinho negro e sua solidão inquietante. O
Paulista, porém, não consegue esquecer as palavras da mulher. Fica matutando o
assunto enquanto ela o abraça no pequeno banquinho de madeira de frente para o
mar. O vento dá uma trégua e apenas acaricia os cabelos dela enquanto refresca
o corpo do Paulista. Quase não falam, não é necessário. Estão felizes curtindo
esse momento só deles. Por uma daquelas coincidências rotineiras do Juá, o
Paulista vê o Gigante se aproximando naquele seu passinho sem pressa na direção
do banquinho do lado. Cumprimentam-se brevemente, como de costume.
O mar calmo,
quase sem ondas, propicia aquela modorra costumeira de fim de tarde. Gigante
acende seu cigarro e inicia seu ritual silencioso de olhar o mar, tragar, dar
umas cuspidinhas na areia, cruzar e descruzar as perninhas, atirar a bituca na
grama e esperar um bom tempo mudo até acender o próximo cigarro e começar tudo
novamente. Enquanto presta uma atenção discreta nos hábitos do anão e faz um
gostoso cafuné nos cabelos da mulher, o Paulista não para de pensar sobre os
mistérios escondidos naquela pequena caixa preta que é o cérebro do Gigante.Como decifrá-los?
À noite, na
cama, sob o mosquiteiro e o ventilador agitado, as mesmas inquietações rondam a
cabeça do Paulista. Pergunta-se por que é tão difícil manter uma conversa com o
Gigante, nunca presenciou uma só que fosse além de pequenos diálogos desconexos.
Talvez, seja a dificuldade de se entender o que ele fala por causa da voz
metálica e quase inaudível. Quem sabe? Lembra-se apenas de uma conversa um
pouco mais longa entre o Gigante e Damião, um funcionário da funerária de
Cachoeiro.
Foi numa
tarde de sábado. Damião chegou de carona com o cunhado do Paulista. O Gigante
estava sentado na ponta de um pequeno murinho de cimento, fumando seu
cigarrinho e olhando as crianças. Ao ouvir o som do carro, o Paulista saiu para
abrir o portão da garagem. Depois de cumprimentar Damião, fez menção de
apresentar-lhe o anão.
- Ah, mas
esse aí é o Gigante!
- Vocês já
se conhecem?
- Claro!
Assisti muito espetáculo de circo com ele. E aí, Gigante, como vai?
- Opa!!!
Tudo bem! - faz um esforço para identificar Damião.
- Está
lembrado de mim?
- Acho que
estou lembrado sim...
- Damião!
Lembra quando vocês iam com o circo lá no Garrafão?
- Ah... lá
no Garrafão sim.
- Damião Pé
na Cova, cara! Lembra?
- É, lembro,
faz tempo. Você gostava de ver os trapezistas, né?
-
Trapezistas nada, eu gostava mesmo é da trapezista. Aquela magrinha, bonitinha,
a Cidinha, lembra dela?
- Opa, já
sei... A filha do Mosquito!
- Isso
mesmo, eu era apaixonado por ela e o Mosquito não queria nem que eu me
aproximasse dela...
- Ele tinha
medo...
- Medo de
quê, homem?
- De você
apanhar ela e não voltar mais pro circo...
- Então era
isso? Pois eu achava que era porque eu era coveiro naquela época!
- Era por
isso também...
- É mesmo?
Mas que mosquito filho da puta!
- Ela gostava
de você, brigava com o Mosquito por sua causa... Quando você ia lá e ela tava
no trapézio, ela ficava espiando você e distraía. O Mosquito tinha medo dela
cair.
- Não diga,
homem! E eu que fiz tanto plano pra levar ela embora comigo, abandonar o Garrafão.
Naquele tempo eu não era casado, mas achava que ela não queria nada comigo e
então toda noite eu ia lá apanhar ela e voltava de mão abanando.
- E toda
noite ela esperava que você apanhasse ela.
- Veja só
como é a vida... – Damião diz isso já com os olhos molhados. Senta ao lado do
Gigante que fica olhando pra ele com olhos também úmidos - ...eu nem imaginava
que podia ter sido tão fácil...
- É... podia
sim...
- E onde é
que ela está hoje, o que aconteceu com ela?
- Casou,
abandonou o circo...
- Ué! E o
Mosquito deixou?
- Não, mas
ele não pôde fazer nada. Lembra do Linguiça? Aquele magrinho alto que
trabalhava na bilheteria?
- Lembro
sim, foi muito meu amigo na época...
- Pois é,
uma noite ele apanhou ela e fugiu...
- O quê?! O
Linguiça fugiu com ela?
- É, levou
ela pra Campos e casou com ela lá...
- Mas não é
possível! Como é que ele pôde fazer isso comigo? Toda vez que eu ia lá no circo
eu conversava com ele. Na entrada e na saída. Quando eu entrava, dizia pra ele
que ia ser naquela noite que eu ia apanhar ela; na saída, toda vez tava eu
dizendo pra ele que não tive coragem, mas que na próxima noite eu ia conseguir.
- Ele criou
coragem e apanhou ela antes de você...
- Está vendo
como a vida é ingrata! Mas e você, homem? Você também tinha uma paixão lá no
circo, fala verdade.
Encabulado,
Gigante abaixa a cabeça e fica quieto. Damião insiste na pergunta e ele
continua mudo, tenso. Coça a cabeça, cruza e descruza os braços, as perninhas.
Olha pro lado e vê o Paulista, fica mais sem graça ainda. Percebendo o
constrangimento, o Paulista pede licença e entra. Fecha o portão tentando não
escutar o resto da conversa. A curiosidade, porém é maior e ele demora-se mais
que o necessário amarrando o portão pelo lado de dentro da garagem.
- Diz aí
Gigante – continua Damião – você gostava daquela moreninha que trabalhava com
os cachorrinhos, né verdade? Como era o nome dela mesmo?
-
Edileusa...
- Isso
mesmo, Edileusa. Ela era bonitinha, magrinha, gostosinha. Devia ter o quê? Uns
quinze anos?
- Catorze.
- Ela era
engraçada, toda espevitada. Dava um duro danado com aqueles vira-latas, mas
nenhum obedecia ela. Ficava até engraçado. O pessoal ria como se fosse número
de palhaço.
- Ela não
tinha culpa, os cachorro é que não conseguia aprender...
- Ah para
com isso, Gigante! A menina era fraca mesmo. Você é que estava caidinho por ela
e ficava ali admirando ela com a cachorrada. Acho que só você não ria dela.
- Edileusa
era uma artista.
- E o que
aconteceu com ela? Conseguiu ensinar os vira-latas?
- Não,
morreu...
Do outro
lado do portão o Paulista sente um silêncio frio, cortante. Prefere entrar e
não ouvir mais nada.
Agora, no
escuro do quarto, a lembrança dessa conversa muda os rumos dos seus pensamentos
a respeito do Gigante. “Por que eu tenho que ficar tentando adivinhar o
que se passa dentro dele? Pra quê?” Melhor deixá-lo em paz com sua
solidão. Quem sabe um dia ele possa falar, quem sabe nada disso exista e a
saudade dos amigos do circo é que faça o Gigante ser assim. Quem sabe?
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