segunda-feira, 9 de maio de 2016

Capítulo 6

















A solidão do Gigante 

- O que será que pensa o Gigante? - pergunta a mulher do Paulista, sem esperar resposta. - O que será que passa naquela cabecinha durante todo o tempo que ele fica sentado ali embaixo da varanda, com as perninhas cruzadas, fumando e olhando as crianças brincando? Tanto tempo andando pra lá e pra cá, fitando o mar sem poder cair na água, sem ninguém pra conversar. Deve sentir uma solidão muito grande. Tadinho do pequeno, tão só, não é gordinho?


Susana muda de assunto ao perceber que o Paulista não sente vontade de conversar sobre anões. Falam do mar, da vida deles ali, do filho, do futuro, do amor... Susana desliga-se por uns momentos do anãozinho negro e sua solidão inquietante. O Paulista, porém, não consegue esquecer as palavras da mulher. Fica matutando o assunto enquanto ela o abraça no pequeno banquinho de madeira de frente para o mar. O vento dá uma trégua e apenas acaricia os cabelos dela enquanto refresca o corpo do Paulista. Quase não falam, não é necessário. Estão felizes curtindo esse momento só deles. Por uma daquelas coincidências rotineiras do Juá, o Paulista vê o Gigante se aproximando naquele seu passinho sem pressa na direção do banquinho do lado. Cumprimentam-se brevemente, como de costume. 

O mar calmo, quase sem ondas, propicia aquela modorra costumeira de fim de tarde. Gigante acende seu cigarro e inicia seu ritual silencioso de olhar o mar, tragar, dar umas cuspidinhas na areia, cruzar e descruzar as perninhas, atirar a bituca na grama e esperar um bom tempo mudo até acender o próximo cigarro e começar tudo novamente. Enquanto presta uma atenção discreta nos hábitos do anão e faz um gostoso cafuné nos cabelos da mulher, o Paulista não para de pensar sobre os mistérios escondidos naquela pequena caixa preta que é o cérebro do Gigante.Como decifrá-los?


À noite, na cama, sob o mosquiteiro e o ventilador agitado, as mesmas inquietações rondam a cabeça do Paulista. Pergunta-se por que é tão difícil manter uma conversa com o Gigante, nunca presenciou uma só que fosse além de pequenos diálogos desconexos. Talvez, seja a dificuldade de se entender o que ele fala por causa da voz metálica e quase inaudível. Quem sabe? Lembra-se apenas de uma conversa um pouco mais longa entre o Gigante e Damião, um funcionário da funerária de Cachoeiro. 

Foi numa tarde de sábado. Damião chegou de carona com o cunhado do Paulista. O Gigante estava sentado na ponta de um pequeno murinho de cimento, fumando seu cigarrinho e olhando as crianças. Ao ouvir o som do carro, o Paulista saiu para abrir o portão da garagem. Depois de cumprimentar Damião, fez menção de apresentar-lhe o anão. 

- Ah, mas esse aí é o Gigante!

- Vocês já se conhecem?

- Claro! Assisti muito espetáculo de circo com ele. E aí, Gigante, como vai?

- Opa!!! Tudo bem! - faz um esforço para identificar Damião.

- Está lembrado de mim?

- Acho que estou lembrado sim...

- Damião! Lembra quando vocês iam com o circo lá no Garrafão? 

- Ah... lá no Garrafão sim.

- Damião Pé na Cova, cara! Lembra?

- É, lembro, faz tempo. Você gostava de ver os trapezistas, né?

- Trapezistas nada, eu gostava mesmo é da trapezista. Aquela magrinha, bonitinha, a Cidinha, lembra dela?

- Opa, já sei... A filha do Mosquito!

- Isso mesmo, eu era apaixonado por ela e o Mosquito não queria nem que eu me aproximasse dela...

- Ele tinha medo...

- Medo de quê, homem?

- De você apanhar ela e não voltar mais pro circo...

- Então era isso? Pois eu achava que era porque eu era coveiro naquela época!

- Era por isso também...

- É mesmo? Mas que mosquito filho da puta!

- Ela gostava de você, brigava com o Mosquito por sua causa... Quando você ia lá e ela tava no trapézio, ela ficava espiando você e distraía. O Mosquito tinha medo dela cair.

- Não diga, homem! E eu que fiz tanto plano pra levar ela embora comigo, abandonar o Garrafão. Naquele tempo eu não era casado, mas achava que ela não queria nada comigo e então toda noite eu ia lá apanhar ela e voltava de mão abanando.

- E toda noite ela esperava que você apanhasse ela.

- Veja só como é a vida... – Damião diz isso já com os olhos molhados. Senta ao lado do Gigante que fica olhando pra ele com olhos também úmidos - ...eu nem imaginava que podia ter sido tão fácil...

- É... podia sim... 

- E onde é que ela está hoje, o que aconteceu com ela?

- Casou, abandonou o circo...

- Ué! E o Mosquito deixou?

- Não, mas ele não pôde fazer nada. Lembra do Linguiça? Aquele magrinho alto que trabalhava na bilheteria?

- Lembro sim, foi muito meu amigo na época...

- Pois é, uma noite ele apanhou ela e fugiu...

- O quê?! O Linguiça fugiu com ela?

- É, levou ela pra Campos e casou com ela lá...

- Mas não é possível! Como é que ele pôde fazer isso comigo? Toda vez que eu ia lá no circo eu conversava com ele. Na entrada e na saída. Quando eu entrava, dizia pra ele que ia ser naquela noite que eu ia apanhar ela; na saída, toda vez tava eu dizendo pra ele que não tive coragem, mas que na próxima noite eu ia conseguir.

- Ele criou coragem e apanhou ela antes de você... 

- Está vendo como a vida é ingrata! Mas e você, homem? Você também tinha uma paixão lá no circo, fala verdade.

Encabulado, Gigante abaixa a cabeça e fica quieto. Damião insiste na pergunta e ele continua mudo, tenso. Coça a cabeça, cruza e descruza os braços, as perninhas. Olha pro lado e vê o Paulista, fica mais sem graça ainda. Percebendo o constrangimento, o Paulista pede licença e entra. Fecha o portão tentando não escutar o resto da conversa. A curiosidade, porém é maior e ele demora-se mais que o necessário amarrando o portão pelo lado de dentro da garagem.

- Diz aí Gigante – continua Damião – você gostava daquela moreninha que trabalhava com os cachorrinhos, né verdade? Como era o nome dela mesmo?

- Edileusa...

- Isso mesmo, Edileusa. Ela era bonitinha, magrinha, gostosinha. Devia ter o quê? Uns quinze anos?

- Catorze.

- Ela era engraçada, toda espevitada. Dava um duro danado com aqueles vira-latas, mas nenhum obedecia ela. Ficava até engraçado. O pessoal ria como se fosse número de palhaço.

- Ela não tinha culpa, os cachorro é que não conseguia aprender...

- Ah para com isso, Gigante! A menina era fraca mesmo. Você é que estava caidinho por ela e ficava ali admirando ela com a cachorrada. Acho que só você não ria dela.

- Edileusa era uma artista.

- E o que aconteceu com ela? Conseguiu ensinar os vira-latas?

- Não, morreu...

Do outro lado do portão o Paulista sente um silêncio frio, cortante. Prefere entrar e não ouvir mais nada.

Agora, no escuro do quarto, a lembrança dessa conversa muda os rumos dos seus pensamentos a respeito do Gigante. “Por que eu tenho que ficar tentando adivinhar o que se passa dentro dele? Pra quê?” Melhor deixá-lo em paz com sua solidão. Quem sabe um dia ele possa falar, quem sabe nada disso exista e a saudade dos amigos do circo é que faça o Gigante ser assim. Quem sabe?


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