segunda-feira, 9 de maio de 2016

Capítulo 3




















Um passeio

Pai e filho caminham pela areia úmida da praia. O grandão, calado, não por angústia ou tristeza, somente uma vontade de não falar, de apenas seguir observando o céu nublado, o mar azul próximo ao horizonte e esverdeado na zona de arrebentação. O pequeno, com toda a curiosidade própria dos cinco anos, experimenta as primeiras ondas de peito aberto, sob os olhos atentos do adulto. 

Seguem, cada um à sua maneira. O pai, com passos curtos, pensados, o olhar perdido. Já o filho, correndo “praqui” e “pracolá”, abaixando-se, levantando-se, catando coisas do chão, atirando objetos na água, perguntando o que é isso, o que é aquilo, o porquê disso, o porquê daquilo.

- Então, isso aqui é alga, papai? Tem certeza? Parece bicho. Outro dia você me mostrou outra coisa e disse que era alga também, só que não era assim, parecia uma folha...

- Existem vários tipos de algas...

O menino espanta-se ao ver uma infinidade de peixes mortos, espalhados pela areia. Por essas bandas a pescaria de arrastão ainda é um hábito, um mau hábito. Peixes miúdos e filhotes trazidos pela rede e abandonados na areia pelos pescadores. 

- Esses peixes estão podres. Se você ficar aí vai pegar o cheiro deles...

- Por que os peixes ficam fedendo assim?

- Porque estão mortos. 

- Todo bicho que morre fede?

- Todos, gente também. Por isso todo morto tem de ser enterrado.

Continuam o passeio. O pequeno no mesmo ritmo, zanzando pra todo lado, vez em quando pegando uma onda, descobrindo pequenos mistérios para perguntar ao pai. Param diante de um grande bloqueio de pedras dispostas ao longo da praia. Do lado esquerdo o barranco, logo acima, a estrada de terra. Justamente onde termina a rua e começa a estrada de terra é que acontecera o desabamento. O mar avançara aos poucos, sem pressa, mas com uma voracidade estupenda, desdenhando as várias tentativas para conter a sua marcha resoluta. A estrada fora interditada naquele trecho e o pequeno fluxo de automóveis desviado para outra estrada de terra bem mais distante da praia. Contemplam o trabalho da natureza. O pai lembra-se dos momentos que passou de carro junto com o filho neste mesmo trecho. Outros tempos aqueles, quando vinham só de visita e mal o cheiro de fumaça da cidade grande se dissipava, já estavam de volta. A água baixa que se infiltrava lentamente por sob as pedras fora o prenúncio de uma morte anunciada.

- Uma estrela do mar! Será que está viva?

- Acho que sim. Olha embaixo dela, no meio de cada uma das suas pontas tem um risco que vai até o centro do corpo. De dentro de cada um desses riscos saem esses pelinhos. Olha aqui, eles são os pezinhos que fazem ela andar. Vou colocar nossa estrela na pedra e você presta atenção que ela vai andar.

- Cadê? Eu não estou vendo nada. Será que ela morreu?

- Não, ela anda muito devagarinho, você tem de ficar olhando e esperando, esperando e olhando...

- Vamos levar ela pra mamãe?

- Você aguenta carregar?

- Só um pouquinho.

Tomam o caminho de volta. O pai na mesma toada e o filho agora com mais dificuldade, tentando se equilibrar na areia molhada enquanto segura a estrela com as duas mãos. Acaba cansando, entrega a estrela ao pai e volta a andar em ziguezagues pela areia.

- Olha, pai, um caranguejo!

Correndo de lado, quase imperceptível, ele tenta fugir dos olhos curiosos do menino. Quatro patinhas pra cá, outras quatro pra lá, dois pontinhos negro que ora sobem, ora descem e na frente as duas presas semitransparentes prontas para o ataque. É todo susto. O pai inicia um balé esquisito com o animalzinho, tentando evitar sua fuga. Corre pra lá, corre pra cá, estica um braço, uma perna. O bichinho para subitamente, patinhas laterais escorando o corpinho, olhinhos esticados no ponto mais alto, garras abertas.

- É um filhotinho! Filhotinho de siri é menor do que o pai dele?

- Claro, você não é menor do que eu?

- Caranguejo nasce de ovo ou da barriga da mãe dele que nem a gente?

O pai vacila. Como pode o sujeito estudar tanto, viajar tanto, conhecer tantas coisas e pessoas diferentes, desenvolver tantos projetos, conversar sobre tantas coisas, dar respostas a tantas perguntas, receber respostas de tantas dúvidas, viver uma vida inteira cheia de aventuras, aprender outras línguas, vivenciar tantos costumes diferentes, se envolver com tantas pessoas, amar algumas, se desentender com outras, corrigir erros, cometer outros erros, lutar por coisas grandes, chorar por coisas pequenas, ajudar e ser ajudado, conquistar vitórias, lamentar derrotas, viver tanto e tão intensamente e não ter uma resposta segura para uma pergunta tão simples!

- Do ovo...

- Que nem cobra e tartaruga?

- É, que nem cobra e tartaruga...

- O siri, papai, está fugindo! A onda vai pegar ele, ele vai pra dentro do mar...

- Não tem problema, ele consegue viver tanto na terra quanto na água. Acho que ele é anfíbio. Sabe o que é um anfíbio?

- (...)

- É o animal que vive tanto na água como fora dela. Sapo é anfíbio, sabia?

- Então, meu tio também é!

- Seu tio? Por quê?

- Porque ele nada muito bem. Ele chega na praia e vem correndo por cima das ondas, depois mergulha e vai sair lá na frente, lá no fundão... E nem morre! Vamos levar a estrela pra mamãe?

- Melhor não. É preciso comprar uma seringa e formol na farmácia. Depois a gente tem de injetar o formol e deixar a estrela secando no sol o dia inteiro. Dá muito trabalho.

- Esse negócio que põe nela com a seringa mata ela?

- Mata, e serve pra conservar a estrela do jeitinho que ela era.

- Acho melhor não matar ela não.

- Então ela tem de voltar pro mar. Fica aqui enquanto eu vou lá na frente, depois das ondas e jogo a estrela bem longe.

- Tá legal, mas não vai muito no fundo.

O menino observa a entrada do pai no mar agitado. Solta um gritinho a cada onda vencida e chama por ele. Vê a água subindo e o corpo afundando Dá um suspiro. Vê o braço levantado segurando a estrela, projetando-se para trás e lançando-a para frente. Assiste o voo da estrela, das mãos do pai até um ponto qualquer naquele mundão de água. Mal ela desaparece seus olhinhos ansiosos buscam o pai. Sente um alívio ao avistá-lo voltando calmamente. A última onda bate com força e empurra-o em direção ao filho. O homem fica surpreso ao ver a agitação da criança, seu coraçãozinho batendo acelerado, os braços agarrando-o com força e os olhos úmidos de quem chorou um choro abafado.

- O que foi, meu filho? 

- Eu fiquei com medo... 

- De quê?

- O senhor não é anfíbio que nem o meu tio...

O Paulista passa o braço em torno do filho, beija-o e caminha com ele pela areia em direção à estrada de terra. Andam agora no mesmo passo, o menino mais aliviado, segurando firme sua mão. As nuvens escuras vão sendo levadas pelo vento. Junto com elas, os pensamentos sombrios do Paulista. Apenas uma pergunta continua solta no espaço: caranguejo nasce mesmo do ovo?

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