A partida
Outubro de
2002, seis e meia da noite, estação rodoviária de São Paulo. Lentamente o
motorista fecha a porta do ônibus com destino a Cachoeiro de Itapemirim.
Quieto, olhos atentos na janela, o Paulista contempla mais uma vez, talvez a
última, o trânsito pesado da marginal. Na poltrona da frente, Susana, sua
esposa, acaricia o rosto adormecido do filho. O Paulista lembra quando
eles, ainda noivos, fizeram esta mesma viagem há onze anos atrás. Situação bem
diferente agora. Só Deus sabe se haverá volta.
O ônibus da
Itapemirim destaca-se na infinidade de veículos, meio que parado, meio que
andando, na ânsia de abandonar de vez a cidade. Melancólico, o Paulista espia
através do vidro as luzes refletidas nas águas impuras do Tietê e sente que
daqui a pouco a cidade ficará para trás, assim como seus parentes, amigos e
vizinhos. O ônibus desvencilha-se do trânsito modorrento, ganha velocidade e
foge feito cavalo selvagem no asfalto escuro da Via Dutra. São Paulo desaparece
e com ela muitos sonhos e planos do Paulista.
Setembro de
2001. Na mesma semana em que as torres gêmeas de Nova York desabaram, ele
perdeu o emprego. Assimilou o golpe no primeiro momento e jogou fora o mau
presságio. Não passava de um fato isolado, assim como a iminência de uma
guerra, a decadência da Argentina, o aumento do desemprego, o estouro da bolha
da Internet, a crise da globalização, a ameaça do terrorismo internacional, e
todos os maus indícios daquele final de ano. Peças distantes de vários
quebra-cabeças que se juntavam e formavam uma barreira no meio do caminho da
humanidade.
Bela hora
para perder o emprego! No auge da carreira, executivo de uma multinacional,
viajando mundo afora num ritmo alucinante. Em pouco mais de dois anos
conhecera países e culturas diferentes. Envolto em novas tecnologias,
experimentara um mundo novo, cibernético. Notebook pra cá, notebook pra lá,
aparelho celular, internet móvel, agendas eletrônicas, viagens, viagens e mais
viagens...
Quando tudo
acabou ele se viu só com sua família e uma imensa incerteza pela frente. No
lugar do notebook, classificados de empregos; no lugar das viagens, envios de
currículos; no lugar do mundo cibernético, o ônibus lotado da Itapemirim; no
lugar de Miami, Marataízes...
É preciso
mudar nossos paradigmas! - qualquer headhunter
de esquina pregava esta máxima como uma verdade absoluta, não só ela como
muitas outras, e aí o mundo ficou complicado demais, rápido demais, com gurus
demais... O ônibus solitário corta a estrada. Mesmo com as janelas fechadas ele
imagina o cheiro de mato, de terra, de bosta de vaca. Quer melhor mudança
de paradigmas?
Pega no sono
um tiquinho, o suficiente para não ver o dia nascendo. Finalmente entram no
Espírito Santo. Na cabeça do Paulista um festival de pensamentos
desencontrados. Nada de apartamento, carro, shopping center, muito menos
trabalho. Até quando? Jamais imaginara que um dia estaria tentando se
reencontrar tão longe de casa, tão no Espírito Santo...
Mimoso do
Sul, última parada antes de Cachoeiro. Agitação dentro do ônibus, gente
acordando, gente descendo. Respira fundo e prepara coração e mente para os
novos rumos da vida. Da complexidade para a simplicidade, da incerteza para a
esperança. A Itabira finalmente aparece, junto com o sol e o calor capixabas.
Desembarcam em Cachoeiro e no dia seguinte pegam a estrada rumo ao mar.
Marataízes,
cidade litorânea do sul do Espírito Santo, famosa por atrair mineiros às suas
praias outrora de rara beleza e hoje prejudicadas pelo avanço inexorável do
mar. Um bairro, uma rua de nome incerto, um caminho de terra sem calçadas, mato
comendo pelas bordas, poças d’água. Quase nenhuma casa, a maioria de
mineiros ainda fiéis. Um sobrado de três andares, discretamente pintado de
amarelo, janelas e portas azuis e um grande portão de madeira, também azul.
Deserto no inverno e cheio de vida no verão, assim é o Bairro do Juá. Tal qual
um paraquedista desgovernado ele caiu, exatamente ali. O executivo paulista
largou sua gravata em cima de um barco e começou seu exílio.
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