segunda-feira, 9 de maio de 2016

Capítulo 2















A partida

Outubro de 2002, seis e meia da noite, estação rodoviária de São Paulo. Lentamente o motorista fecha a porta do ônibus com destino a Cachoeiro de Itapemirim. Quieto, olhos atentos na janela, o Paulista contempla mais uma vez, talvez a última, o trânsito pesado da marginal. Na poltrona da frente, Susana, sua esposa, acaricia o rosto adormecido do filho. O Paulista lembra quando eles, ainda noivos, fizeram esta mesma viagem há onze anos atrás. Situação bem diferente agora. Só Deus sabe se haverá volta.

O ônibus da Itapemirim destaca-se na infinidade de veículos, meio que parado, meio que andando, na ânsia de abandonar de vez a cidade. Melancólico, o Paulista espia através do vidro as luzes refletidas nas águas impuras do Tietê e sente que daqui a pouco a cidade ficará para trás, assim como seus parentes, amigos e vizinhos. O ônibus desvencilha-se do trânsito modorrento, ganha velocidade e foge feito cavalo selvagem no asfalto escuro da Via Dutra. São Paulo desaparece e com ela muitos sonhos e planos do Paulista. 

Setembro de 2001. Na mesma semana em que as torres gêmeas de Nova York desabaram, ele perdeu o emprego. Assimilou o golpe no primeiro momento e jogou fora o mau presságio. Não passava de um fato isolado, assim como a iminência de uma guerra, a decadência da Argentina, o aumento do desemprego, o estouro da bolha da Internet, a crise da globalização, a ameaça do terrorismo internacional, e todos os maus indícios daquele final de ano. Peças distantes de vários quebra-cabeças que se juntavam e formavam uma barreira no meio do caminho da humanidade.
Bela hora para perder o emprego! No auge da carreira, executivo de uma multinacional, viajando mundo afora num ritmo alucinante. Em pouco mais de dois anos conhecera países e culturas diferentes. Envolto em novas tecnologias, experimentara um mundo novo, cibernético. Notebook pra cá, notebook pra lá, aparelho celular, internet móvel, agendas eletrônicas, viagens, viagens e mais viagens...

Quando tudo acabou ele se viu só com sua família e uma imensa incerteza pela frente. No lugar do notebook, classificados de empregos; no lugar das viagens, envios de currículos; no lugar do mundo cibernético, o ônibus lotado da Itapemirim; no lugar de Miami, Marataízes... 

É preciso mudar nossos paradigmas! - qualquer headhunter de esquina pregava esta máxima como uma verdade absoluta, não só ela como muitas outras, e aí o mundo ficou complicado demais, rápido demais, com gurus demais... O ônibus solitário corta a estrada. Mesmo com as janelas fechadas ele imagina o cheiro de mato, de terra, de bosta de vaca. Quer melhor mudança de paradigmas?


Pega no sono um tiquinho, o suficiente para não ver o dia nascendo. Finalmente entram no Espírito Santo. Na cabeça do Paulista um festival de pensamentos desencontrados. Nada de apartamento, carro, shopping center, muito menos trabalho. Até quando? Jamais imaginara que um dia estaria tentando se reencontrar tão longe de casa, tão no Espírito Santo... 

Mimoso do Sul, última parada antes de Cachoeiro. Agitação dentro do ônibus, gente acordando, gente descendo. Respira fundo e prepara coração e mente para os novos rumos da vida. Da complexidade para a simplicidade, da incerteza para a esperança. A Itabira finalmente aparece, junto com o sol e o calor capixabas. Desembarcam em Cachoeiro e no dia seguinte pegam a estrada rumo ao mar.

Marataízes, cidade litorânea do sul do Espírito Santo, famosa por atrair mineiros às suas praias outrora de rara beleza e hoje prejudicadas pelo avanço inexorável do mar. Um bairro, uma rua de nome incerto, um caminho de terra sem calçadas, mato comendo pelas bordas, poças d’água. Quase nenhuma casa, a maioria de mineiros ainda fiéis. Um sobrado de três andares, discretamente pintado de amarelo, janelas e portas azuis e um grande portão de madeira, também azul. Deserto no inverno e cheio de vida no verão, assim é o Bairro do Juá. Tal qual um paraquedista desgovernado ele caiu, exatamente ali. O executivo paulista largou sua gravata em cima de um barco e começou seu exílio.




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