O point dos aposentados
Quando o vento sul para de soprar, durante o verão, o Bairro do Juá fica
extremamente agradável. A praia deserta e o mar quase sem ondas. Na falta do
que fazer, cada um dá um jeito de ocupar a tarde, seja dormindo, pescando,
tomando cerveja ou conversando fiado debaixo de uma sombra. Existe um lugar na
beira da praia conhecido como o “point dos aposentados” onde bate ponto um
grupo animado de velhos amigos apreciadores de um bom papo sem compromisso. Ali
não se bebe, não se come, apenas se fala. O máximo da condescendência é fumar
um cigarrinho vez em quando. O Véio encosta-se ali depois da pescaria
e vai destilando seus causos.
- Até que
enfim parou o vento! – fala mansamente um senhor de aproximadamente uns
sessenta anos, sentado num banco mais alto - Deve estar bom pra pescar, né
Véio?
- Bom,
bom... não está, porque tem pouco peixe. Mas também não está ruim. Dá pra
apanhar umas enchova boa. Na pior das hipóteses, uns roncador pra servir de
isca.
- Ué! Mas
não dá peixe quando para o vento?
- Dá, quer
dizer, costuma dar. Hoje em dia não está dando muito, você sabe por causa de
quê?
- Acho que é
por causa daquela obra que fizeram na praia do centro – responde outro senhor
de aparência mais velha, encostado no pau de sustentação do teto da cabana -
aquele monte de pedra presa desvia a água barrenta que vem do rio e assusta os
peixes.
- Né, não...
– contesta o Véio – O maior problema é o arrastão, essas redes que eles puxam
todo dia, às vez duas ou três vez no dia. Isso é uma praga, sô! Toda vez que
eles puxam uma rede, você pode ver o bando de peixinho miúdo que vem preso. E
eles deixam tudo morrer na areia. Ninguém pensa que esses peixinhos que estão
morrendo agora vão fazer falta amanhã. Mesmo os peixes bons que eles apanham,
eles vendem tudo por dois mirréis. Nunca vão pra frente, vão continuar puxando
rede enquanto tiver peixe, e viver na pobreza. Mas eu acho que no fundo eles
não têm culpa. Esses pescadores precisava ter mais instrução. Eu acho que esses
homens do nosso governo deviam ajudar, dar educação pra eles saber lidar com a
pesca e acabar de vez com esse negócio de arrastão.
- Você sabe,
Véio, - intervém um senhor mais novo que os outros, só de bermuda e com um
grande caroço na barriga - que o Lula está querendo criar o ministério da
pesca? Você podia virar ministro dele...
- Para com
isso rapaz! Você é muito gozador, mas eu estou falando sério.
- Pra mim o
Lula não chega a ficar um ano lá na presidência. – opina o baixinho.
- Por causa
de quê? – pergunta o Véio.
- Não tem
preparo, o homem nunca governou nada!
- Mas o povo
todo está do lado dele. Nunca nenhum presidente teve o tanto de voto que ele
teve!
- Mas isso
não quer dizer nada – insiste o baixinho – Isso foi eleição, agora o negócio é
pra valer. O Lula passou a vida toda tentando ser presidente, e você quer saber
o que eu acho que vai acontecer com ele? Ele vai é se borrar todo quando a
coisa começar mesmo a apertar!
- Não fala
besteira, Tsiu! O homem está preparado sim, se preparou a vida toda pra isso!
- Pois eu
pago pra ver! Duvido que ele termine o governo.
- O Tsiu
está é bronqueado com ele – alfineta o velho do caroço na barriga – porque
também veio do nordeste na merda que nem o Lula, só que continua na merda.
- Larga a
mão, meu, você sabe que eu sou mineiro.
- Ué, eu sempre
soube que você era baiano.
- Baiano
nada, eu sou de Jandira, no norte de Minas.
- Pois pra
mim, mineiro é baiano cansado.
- Vocês sabe
duma coisa? – pergunta o Véio – Eu acho que o Lula está correndo um risco
danado justamente porque ele prometeu muita coisa pra esse povo todo, coisa que
ele não tem condição de cumprir. Só que agora que ele ganhou a presidência,
está dizendo as coisas ao contrário do que falou na campanha. E o povo não é
besta, vai cobrar dele! Hoje o povo está tudo abraçando e beijando ele, e ele
está todo feliz dando autógrafo praqui, pracolá, mas presta só atenção no que
eu estou dizendo, esse mesmo povo que está agora abraçando ele é quem vai
querer por ele pra fora se ele não fizer um tiquinho só do que prometeu. Vocês
pode escrever!...
Enquanto a
discussão corre acalorada, o Paulista e a mulher caminham tranquilamente pela
rua de terra da orla marítima e resolvem participar do bate-papo. Chegam
devagar, cumprimentam todos com um sorriso.
- E aí,
Véio, estão falando de quê?
- Nada,
minha fia, só de comida...
- Taí um
assunto que você gosta. O pastelzinho e a cavaca que você faz é uma delícia!
- Mas o
forte dele é a carne de porco – diz o baixinho, animado.
- É, minha
fia, mas o que a gente tava falando aqui é de comida estranha, dessas que pouca
gente comeu e que muita gente nunca nem teve coragem de provar.
- Que nem
carne de gato? – arrisca o Paulista.
- Que carne
de gato, meu querido, carne de gato aqui é mato! De quê você acha que são feito
esses churrasquinhos da praia?
- E aí, Véio
você comeu ou não comeu o gambá? – pergunta o homem do caroço.
- Comi, sem
problema nenhum.
- Eu já comi
carne de gambá, mas foi enganado. – Completa o homem do caroço.
- É sempre
assim – observa o Paulista – todo mundo que come uma carne diferente diz que
comeu enganado.
- Pois eu
não – responde o Véio - Eu comi sabendo mesmo. E quer saber do que mais? É uma
carne danada de boa!
- Credo! –
Susana faz cara de nojo.
- Qué isso,
menina! Pois você não sabe o que está perdendo. Agora o bicho é feio mesmo!
Quem fica olhando muito pra ele vivo não come não.
- Eu, quando
compro carne de cabrito, mando mostrar os pés, pra ver se é cabrito mesmo!
- Mas
cabritinho é um bicho muito limpo. Se tiver uma sujeirinha na comida dele, ele
não come.
- Bicho sujo
é galinha caipira.
- Mais sujo
que porco?
- Mil vezes!
O porco vive ali no meio daquela sujeira, mas ele só come o que a gente dá pra
ele, quer dizer, resto de comida da casa. Galinha criada no sítio vive pelo
terreiro, come tudo que é bicho, tudo que é porcaria.
- Vocês
sabem que eu já comi cobra?
- Credo,
vocês não têm coisa melhor pra falar ou pra comer não? Uma picanha fatiada, por
exemplo?
- Coisa boa
é uma porquinha cozinhada na banha! – baba-se o Véio!
- Mas não é
qualquer um que sabe fazer não, Véio!
- Porque a
maioria não tem paciência de tirar a gordura. Você tem que deixar ela na água
fervendo até aquela gordura toda ir embora, depois é que você vai cortar os pedaços
certos e jogar na banha. Óia, meu filho – gaba-se o Véio para o Paulista – é
tão bom que nem cachorro come. Com uma cachacinha, então! Por falar em cachaça,
vocês sabem que o Gigante já foi chegado numa branquinha?
- O quê?! O
pequenininho?
- Ele mesmo.
– responde o Véio – Ele gostava que só duma pinguinha. E bebia bem, o
danadinho! Ele trabalhava num alambique antes de trabalhar no circo. Pois é,
ele ficava ali na torneirinha do barril. Era ele que abria a torneirinha pra
sair a primeira leva da cachaça. Pinga boa mesmo é a que fica no meio do
barril, não é nem a primeira nem a última que sai. Essas duas aí não são pinga
boa porque são muito graduada no álcool. Quando a primeira leva da cachaça saía
do alambique, o Gigante ficava segurando a torneirinha virada pra cá, enchendo
as garrafas de pinga de qualidade mais baixa, até atingir o grau certo; aí ele
virava a torneirinha pra ir enchendo as garrafas de exportação. Quando estava
chegando no fim, ele voltava a torneirinha de novo pro lado das garrafas de
menor qualidade. Nessas idas e vindas da torneirinha ele sempre dava umas
bicadas. No fim do dia, tadinho, tava bebinho.
- E ele não
caía? – pergunta Susana, curiosa.
- Sei não,
minha filha, acho que a sorte dele é que ele é tão baixinho que quando ficava
tonto era só escorar as mãozinhas no chão...
Um carro
passa em alta velocidade na estrada de terra, rente à barraca dos aposentados e
para do outro lado da rua. O Paulista contempla a poeira com o pensamento
distante. A conversa continua correndo solta, mas ele parece já não ouvir mais
nada. Susana percebe e segura sua mão. Tem observado o comportamento dele nas
últimas semanas e já não se surpreende quando ele parece sair do ar. Ela sabe o
quanto ele tem se ressentido com a falta de trabalho e de perspectivas de
melhoria. Sempre que isso acontece ela procura ficar ao seu lado e desviar sua
atenção da realidade. Uma realidade da qual ela também procura distanciar-se,
mesmo que seja por alguns momentos. Nesses momentos até carne de gambá e embriaguez
do Gigante têm sua importância.
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