segunda-feira, 9 de maio de 2016

Capítulo 7

















O point dos aposentados

Quando o vento sul para de soprar, durante o verão, o Bairro do Juá fica extremamente agradável. A praia deserta e o mar quase sem ondas. Na falta do que fazer, cada um dá um jeito de ocupar a tarde, seja dormindo, pescando, tomando cerveja ou conversando fiado debaixo de uma sombra. Existe um lugar na beira da praia conhecido como o “point dos aposentados” onde bate ponto um grupo animado de velhos amigos apreciadores de um bom papo sem compromisso. Ali não se bebe, não se come, apenas se fala. O máximo da condescendência é fumar um cigarrinho vez em quando. O Véio encosta-se ali depois da pescaria e vai destilando seus causos.

- Até que enfim parou o vento! – fala mansamente um senhor de aproximadamente uns sessenta anos, sentado num banco mais alto - Deve estar bom pra pescar, né Véio?

- Bom, bom... não está, porque tem pouco peixe. Mas também não está ruim. Dá pra apanhar umas enchova boa. Na pior das hipóteses, uns roncador pra servir de isca.

- Ué! Mas não dá peixe quando para o vento?

- Dá, quer dizer, costuma dar. Hoje em dia não está dando muito, você sabe por causa de quê?

- Acho que é por causa daquela obra que fizeram na praia do centro – responde outro senhor de aparência mais velha, encostado no pau de sustentação do teto da cabana - aquele monte de pedra presa desvia a água barrenta que vem do rio e assusta os peixes.

- Né, não... – contesta o Véio – O maior problema é o arrastão, essas redes que eles puxam todo dia, às vez duas ou três vez no dia. Isso é uma praga, sô! Toda vez que eles puxam uma rede, você pode ver o bando de peixinho miúdo que vem preso. E eles deixam tudo morrer na areia. Ninguém pensa que esses peixinhos que estão morrendo agora vão fazer falta amanhã. Mesmo os peixes bons que eles apanham, eles vendem tudo por dois mirréis. Nunca vão pra frente, vão continuar puxando rede enquanto tiver peixe, e viver na pobreza. Mas eu acho que no fundo eles não têm culpa. Esses pescadores precisava ter mais instrução. Eu acho que esses homens do nosso governo deviam ajudar, dar educação pra eles saber lidar com a pesca e acabar de vez com esse negócio de arrastão.

- Você sabe, Véio, - intervém um senhor mais novo que os outros, só de bermuda e com um grande caroço na barriga - que o Lula está querendo criar o ministério da pesca? Você podia virar ministro dele...

- Para com isso rapaz! Você é muito gozador, mas eu estou falando sério.

- Pra mim o Lula não chega a ficar um ano lá na presidência. – opina o baixinho.

- Por causa de quê? – pergunta o Véio. 

- Não tem preparo, o homem nunca governou nada!

- Mas o povo todo está do lado dele. Nunca nenhum presidente teve o tanto de voto que ele teve!

- Mas isso não quer dizer nada – insiste o baixinho – Isso foi eleição, agora o negócio é pra valer. O Lula passou a vida toda tentando ser presidente, e você quer saber o que eu acho que vai acontecer com ele? Ele vai é se borrar todo quando a coisa começar mesmo a apertar!

- Não fala besteira, Tsiu! O homem está preparado sim, se preparou a vida toda pra isso!

- Pois eu pago pra ver! Duvido que ele termine o governo.

- O Tsiu está é bronqueado com ele – alfineta o velho do caroço na barriga – porque também veio do nordeste na merda que nem o Lula, só que continua na merda.

- Larga a mão, meu, você sabe que eu sou mineiro.

- Ué, eu sempre soube que você era baiano.

- Baiano nada, eu sou de Jandira, no norte de Minas. 

- Pois pra mim, mineiro é baiano cansado.

- Vocês sabe duma coisa? – pergunta o Véio – Eu acho que o Lula está correndo um risco danado justamente porque ele prometeu muita coisa pra esse povo todo, coisa que ele não tem condição de cumprir. Só que agora que ele ganhou a presidência, está dizendo as coisas ao contrário do que falou na campanha. E o povo não é besta, vai cobrar dele! Hoje o povo está tudo abraçando e beijando ele, e ele está todo feliz dando autógrafo praqui, pracolá, mas presta só atenção no que eu estou dizendo, esse mesmo povo que está agora abraçando ele é quem vai querer por ele pra fora se ele não fizer um tiquinho só do que prometeu. Vocês pode escrever!... 

Enquanto a discussão corre acalorada, o Paulista e a mulher caminham tranquilamente pela rua de terra da orla marítima e resolvem participar do bate-papo. Chegam devagar, cumprimentam todos com um sorriso. 

- E aí, Véio, estão falando de quê?

- Nada, minha fia, só de comida...

- Taí um assunto que você gosta. O pastelzinho e a cavaca que você faz é uma delícia!

- Mas o forte dele é a carne de porco – diz o baixinho, animado.

- É, minha fia, mas o que a gente tava falando aqui é de comida estranha, dessas que pouca gente comeu e que muita gente nunca nem teve coragem de provar.

- Que nem carne de gato? – arrisca o Paulista.

- Que carne de gato, meu querido, carne de gato aqui é mato! De quê você acha que são feito esses churrasquinhos da praia?

- E aí, Véio você comeu ou não comeu o gambá? – pergunta o homem do caroço.

- Comi, sem problema nenhum.

- Eu já comi carne de gambá, mas foi enganado. – Completa o homem do caroço.

- É sempre assim – observa o Paulista – todo mundo que come uma carne diferente diz que comeu enganado.

- Pois eu não – responde o Véio - Eu comi sabendo mesmo. E quer saber do que mais? É uma carne danada de boa!

- Credo! – Susana faz cara de nojo.

- Qué isso, menina! Pois você não sabe o que está perdendo. Agora o bicho é feio mesmo! Quem fica olhando muito pra ele vivo não come não.

- Eu, quando compro carne de cabrito, mando mostrar os pés, pra ver se é cabrito mesmo!

- Mas cabritinho é um bicho muito limpo. Se tiver uma sujeirinha na comida dele, ele não come. 

- Bicho sujo é galinha caipira.

- Mais sujo que porco?

- Mil vezes! O porco vive ali no meio daquela sujeira, mas ele só come o que a gente dá pra ele, quer dizer, resto de comida da casa. Galinha criada no sítio vive pelo terreiro, come tudo que é bicho, tudo que é porcaria. 

- Vocês sabem que eu já comi cobra?

- Credo, vocês não têm coisa melhor pra falar ou pra comer não? Uma picanha fatiada, por exemplo?

- Coisa boa é uma porquinha cozinhada na banha! – baba-se o Véio!

- Mas não é qualquer um que sabe fazer não, Véio!

- Porque a maioria não tem paciência de tirar a gordura. Você tem que deixar ela na água fervendo até aquela gordura toda ir embora, depois é que você vai cortar os pedaços certos e jogar na banha. Óia, meu filho – gaba-se o Véio para o Paulista – é tão bom que nem cachorro come. Com uma cachacinha, então! Por falar em cachaça, vocês sabem que o Gigante já foi chegado numa branquinha? 

- O quê?! O pequenininho? 

- Ele mesmo. – responde o Véio – Ele gostava que só duma pinguinha. E bebia bem, o danadinho! Ele trabalhava num alambique antes de trabalhar no circo. Pois é, ele ficava ali na torneirinha do barril. Era ele que abria a torneirinha pra sair a primeira leva da cachaça. Pinga boa mesmo é a que fica no meio do barril, não é nem a primeira nem a última que sai. Essas duas aí não são pinga boa porque são muito graduada no álcool. Quando a primeira leva da cachaça saía do alambique, o Gigante ficava segurando a torneirinha virada pra cá, enchendo as garrafas de pinga de qualidade mais baixa, até atingir o grau certo; aí ele virava a torneirinha pra ir enchendo as garrafas de exportação. Quando estava chegando no fim, ele voltava a torneirinha de novo pro lado das garrafas de menor qualidade. Nessas idas e vindas da torneirinha ele sempre dava umas bicadas. No fim do dia, tadinho, tava bebinho.

- E ele não caía? – pergunta Susana, curiosa.

- Sei não, minha filha, acho que a sorte dele é que ele é tão baixinho que quando ficava tonto era só escorar as mãozinhas no chão...

Um carro passa em alta velocidade na estrada de terra, rente à barraca dos aposentados e para do outro lado da rua. O Paulista contempla a poeira com o pensamento distante. A conversa continua correndo solta, mas ele parece já não ouvir mais nada. Susana percebe e segura sua mão. Tem observado o comportamento dele nas últimas semanas e já não se surpreende quando ele parece sair do ar. Ela sabe o quanto ele tem se ressentido com a falta de trabalho e de perspectivas de melhoria. Sempre que isso acontece ela procura ficar ao seu lado e desviar sua atenção da realidade. Uma realidade da qual ela também procura distanciar-se, mesmo que seja por alguns momentos. Nesses momentos até carne de gambá e embriaguez do Gigante têm sua importância.


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