A
chegada
1999, último
Natal antes do bug do milênio. Chove como nunca na madrugada
escura do bairro do Juá. Um zunido de cantorias e de gente falando ao mesmo
tempo abafa o som enfraquecido de um velho caminhão. Na varanda do último
andar um vulto solitário assiste o desenrolar da confusa mudança. Gritos contidos,
buzina desafinada, batuques e o som inconfundível de uma infinidade de
crianças...
- Acorda
Véio!
O grito vem
da boleia do caminhão. Na cabine estreita três ou quatro pessoas espremem-se
umas contra as outras e todas contra o motorista suado e agarrado ao volante,
tentando dirigir sem cair da cabine. Calmamente o caminhão passa rangendo sob a
varanda e para em frente a uma casa humilde, portãozinho quase caindo, muro sem
reboque. Segurando um inútil guarda-chuva e trajando apenas um calção preto, o
Véio espera pacientemente o apagar do motor para iniciar o rápido ajeitamento
da parentalha.
Da varanda,
a única testemunha ocular da balbúrdia tenta acompanhar todos os movimentos do
desembarque dos novos vizinhos. Minutos que ficarão gravados para sempre como
uma pequena lição de vida, de desprendimento e felicidade incomensuráveis
diante de tão pouco. Correm aparentemente a esmo sob a chuva, cumprimentam-se,
matam antigas saudades, agarram objetos e crianças de colo, carregam travessas
de camas, caixas, gavetas e sacos. Orientados pelo Véio, uns entram na casa
vizinha enquanto outros atravessam o quintal de mato recém aparado por uma
trilha tortuosa que leva a um barraco de um cômodo só, com uma porta lateral e
duas janelas na parede mais extensa, exatamente de frente para o sobrado
amarelo.
Apenas dois
ou três homens permanecem no terreiro, improvisando janelas e portas para o
barraco. O restante já se espalhou e ocupa agora todos os espaços das duas
moradias. Dentro do barraco, como por encanto, surge a luz de uma lâmpada
pendurada no teto por dois fios entrelaçados. Nada mais falta para chamá-lo de
lar. Solitário, o motorista recolhe lonas, cordas e pedaços de madeira. Ajeita
tudo sem muita pressa e, com muito cuidado, entra na cabine. Fecha a porta
descorada e repleta de pontos de ferrugem. Gira a chave e o ronco áspero do
motor corta a madrugada chuvosa.
- O Gigante!
A gente esqueceu do Gigante!
O motorista
aborta a partida prontamente e espia o homem correndo aos berros. Esquecido num
canto da carroceria, próximo à boleia, com o corpinho negro encharcado e os
olhos conformados de quem já não se espanta com nada, Gigante segura-se
cuidadosamente na grade de madeira. O homem estende os braços em sua direção.
Com uma habilidade inesperada o anão salta e é colocado no chão enlameado com
uma delicadeza quase fraternal. Por fim o caminhão dá a partida e toma o rumo
da estrada de terra, deixando para trás as ruas e esquinas esburacadas e
enlameadas do bairro do Juá.
Do alto da
sacada, Rosinha ainda avista-os caminhando de mãos dadas até a entrada do
barraco. Entram e juntam-se aos demais para entoar as primeiras orações
natalinas em volta da pequena mesa, sob a tênue luz da única lâmpada do pequeno
lar improvisado.
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