segunda-feira, 9 de maio de 2016

Capítulo 1

















A chegada

1999, último Natal antes do bug do milênio. Chove como nunca na madrugada escura do bairro do Juá. Um zunido de cantorias e de gente falando ao mesmo tempo abafa o som enfraquecido de um velho caminhão. Na varanda do último andar um vulto solitário assiste o desenrolar da confusa mudança. Gritos contidos, buzina desafinada, batuques e o som inconfundível de uma infinidade de crianças...

- Acorda Véio! 

O grito vem da boleia do caminhão. Na cabine estreita três ou quatro pessoas espremem-se umas contra as outras e todas contra o motorista suado e agarrado ao volante, tentando dirigir sem cair da cabine. Calmamente o caminhão passa rangendo sob a varanda e para em frente a uma casa humilde, portãozinho quase caindo, muro sem reboque. Segurando um inútil guarda-chuva e trajando apenas um calção preto, o Véio espera pacientemente o apagar do motor para iniciar o rápido ajeitamento da parentalha. 

Da varanda, a única testemunha ocular da balbúrdia tenta acompanhar todos os movimentos do desembarque dos novos vizinhos. Minutos que ficarão gravados para sempre como uma pequena lição de vida, de desprendimento e felicidade incomensuráveis diante de tão pouco. Correm aparentemente a esmo sob a chuva, cumprimentam-se, matam antigas saudades, agarram objetos e crianças de colo, carregam travessas de camas, caixas, gavetas e sacos. Orientados pelo Véio, uns entram na casa vizinha enquanto outros atravessam o quintal de mato recém aparado por uma trilha tortuosa que leva a um barraco de um cômodo só, com uma porta lateral e duas janelas na parede mais extensa, exatamente de frente para o sobrado amarelo. 

Apenas dois ou três homens permanecem no terreiro, improvisando janelas e portas para o barraco. O restante já se espalhou e ocupa agora todos os espaços das duas moradias. Dentro do barraco, como por encanto, surge a luz de uma lâmpada pendurada no teto por dois fios entrelaçados. Nada mais falta para chamá-lo de lar. Solitário, o motorista recolhe lonas, cordas e pedaços de madeira. Ajeita tudo sem muita pressa e, com muito cuidado, entra na cabine. Fecha a porta descorada e repleta de pontos de ferrugem. Gira a chave e o ronco áspero do motor corta a madrugada chuvosa.

- O Gigante! A gente esqueceu do Gigante!

O motorista aborta a partida prontamente e espia o homem correndo aos berros. Esquecido num canto da carroceria, próximo à boleia, com o corpinho negro encharcado e os olhos conformados de quem já não se espanta com nada, Gigante segura-se cuidadosamente na grade de madeira. O homem estende os braços em sua direção. Com uma habilidade inesperada o anão salta e é colocado no chão enlameado com uma delicadeza quase fraternal. Por fim o caminhão dá a partida e toma o rumo da estrada de terra, deixando para trás as ruas e esquinas esburacadas e enlameadas do bairro do Juá.


Do alto da sacada, Rosinha ainda avista-os caminhando de mãos dadas até a entrada do barraco. Entram e juntam-se aos demais para entoar as primeiras orações natalinas em volta da pequena mesa, sob a tênue luz da única lâmpada do pequeno lar improvisado.

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