Na sombra da castanheira
Em frente à
casa do Véio tem uma castanheira. Com sua sombra acolhedora ela é parada
obrigatória para quem caminha pelas ruas de terra sob o sol quente do litoral.
Isso acaba até virando desculpa pra todo mundo se encostar ali e ouvir as
histórias do Véio. Munido do seu banquinho de madeira ele se ajeita assim como
quem não quer nada a não ser esperar o tempo passar. Sentado num pequeno banco
de madeira ele vigia as crianças enquanto elas brincam, cumprimenta os vizinhos
que passam de volta da praia e é claro, proseia com aqueles que param. Os
assuntos são os mais variados. Quando percebe que a conversa vai tomando corpo
e mais pessoas vão se aproximando ele corre até a sala e volta com um banco
maior, daqueles que antigamente acomodavam os famosos televisinhos. As pessoas chegam, sentam-se e puxam conversa. Os
mais apressados dão lugar a outros num rodízio sereno, enquanto alguns fincam a
bunda na madeira e dali só saem tarde da noite.
Naquela
tarde, ele e a Jacira, a irmã do Gigante, travavam uma conversa familiar cujo
tema era a geladeira quebrada e a hipótese de não se efetuar o conserto a tempo
para a ceia de Natal. Justamente quando o Véio estava dizendo para ela deixar a
geladeira por conta do Ferrugem, chegaram Susana e o Paulista. Veterana na arte
de pegar o fio da meada em qualquer conversa, Susana já chegou tomando parte na
discussão.
- Geladeira
enferrujada, Jacira? Maresia...
- Que
maresia, que enferrujada, mulher?
- Por que
esse espanto, Véio? Não foi você mesmo que falou que a geladeira dela está
enferrujada? Está ficando doido?
- Filhinha
do céu, eu estava falando do Ferrugem, um amigo nosso que é técnico, conserta
televisão, rádio, fogão, geladeira, tudo... A gente chama ele assim por causa
que ele tem uma carinha desbotada, de tanto tomar sol.
- Quer dizer
que você está aí todo folgado só porque sua mulher está viajando? - Pergunta
Susana, com aquele jeito que só ela tem de mudar de assunto instantaneamente -
Já arrumou a casa? Amanhã cedinho ela chega e se tiver tudo bagunçado o couro
vai comer, que eu sei que ela é brava...
- Ela tem o
jeito dela de arrumar, se eu fizer do meu jeito quando ela chegar ela desfaz
tudo e faz do jeito dela! Aí são dois trabalhos. Outro dia ela tava fazendo um
serviço que não precisava... Pra quê apanhar lenha se o fogão da gente é a
gás?! Ela é muito trabalhadeira, é verdade, só que ela não para nunca. Quando
não tem mais serviço, ela inventa. Eu ajudo no que tem precisão, se não tem
necessidade pra quê o trabalho?!
Alheios à
conversa, os meninos brincam animados. Valtinho e Caíque, netos do Véio, mais o
Edinho, neto da Jacira manuseiam plantas, vidros e pedras. Guilherme, filho do
Paulista, e Rafael, outro neto do Véio, puxam carrinhos de plásticos presos com
barbantes. Logo o Véio trata de botar reparo na brincadeira dos netos. Com uma
pedra eles amassam um punhado de flores apanhadas no quintal. Depois de bem
amassadas eles jogam a pasta obtida dentro de um vidro grande cheio de água.
- Que é que
vocês tão fazendo aí, Caíque?
- Um
remédio.
- Remédio
pra quê?
- Não sei...
- Ué, se não
sabe, pra que está tendo todo esse trabalho? Olha só, gente, tem dia que eles
passam a tarde toda fazendo esses remédios. Diz que é pra matar formiga,
marimbondo... Têm um trabalho danado, depois jogam tudo fora. Bicho engraçado é
menino, olha ali aqueles dois brincando com aqueles carrinhos velhos, passando
com eles nas poças d’água. Óia só que felicidade! Depois que os brinquedos
ficam velhos aí é que eles agarram a brincar com gosto...
Satisfeito,
o Paulista observa seu filho feliz, pisando na lama. Nem parece aquele menino
que chegou de São Paulo com receio de andar descalço, correndo de cabeça baixa,
machucando os pezinhos nas pedrinhas da rua. Pensando por esse lado, até que
não foi um mau negócio pra ele.
- Véio, que
formigas são essas aí embaixo do seu pé? – pergunta a mulher do Paulista.
- São
paraguaia...
- Paraguaia?
Por quê?
- Porque
elas não morde não...
- Mas
aquelas que ficam ali na grama mordem sim. Outro dia pegaram o pé do Guilherme,
ainda bem que eu estava com a mangueira e joguei água nelas. Aquelas lá são
formiga quente.
- Isso
mesmo, essas quente aí são brava, morde que só...
- Tem cobra
nesse mato, Véio?
- Aí tem a
druminhoca, tudo quietinha, por trás da moita, esperando você passar, armando o
bote. Se ela não te pegar na ida, pega na volta. Quanta gente já foi picada aí nesse
mato, sem nem perceber!
- E o veneno
dela mata?
- Depende.
Se o sujeito não ver, ele sente só um formigão na pernas e nem faz causo,
no dia seguinte já está melhor. Agora, se o sujeito vê a druminhoca
picando ele, logo ele se apavora e faz o sangue correr mais rápido nas veias e
se espalhar no corpo. Se não for acudido rápido pode morrer sim.
- Está
vendo, gordinho, por isso eu vivo falando pro Guilherme não entrar no mato!
Nossa, mas tem muito bicho aqui, né Véio? Por que tinha que juntar tanto bicho
dentro de casa? É taruíra, esperança, besouro, barata... Eu tenho horror de
barata!
- Mas uma
mulherona dessas com medo duns bichinhos que não faz mal nenhum!
- O que eu
não suporto mesmo é barata, bicho nojento!
- Filhinha
de Deus, você não tem vergonha de ter um medo tão grande desses?
- Vergonha
por quê? Me diz se o senhor conhece alguma mulher que não tem pavor de
barata?
- Você sabia
que por aqui tem muito morcego? Aí mesmo na casa de vocês costumava dá
muito, eles faziam ninho aí. Ronaldo ficava doido, metia o pau pra riba
deles... Vez em quando descia cada um bitelão voando louco pelo vão da parede.
Vocês sabem que os morcegos sai tudo de noite por essas mata aí pra comer? Eles
gostam que só vendo de comer umas frutinhas que dá aí por dentro. Antes de
amanhecer eles voltam tudo pros teto das casa aqui e passa o dia dormindo,
tudinho de ponta cabeça, dormindo e cagando todas as frutinhas que eles
comeram. O chão fica uma porcaiada danada. Agora acabou, não sei o que o
Ronaldo fez, mas eles não apareceram mais por aqui.
A conversa
continua pela tarde afora, Susana lembra que é noite de lua cheia e chama o
filho pra ir ver a lua nascer lá na praia. A molecada toda vai trás como numa
procissão. O Véio continua sentado no banco proseando, contando seus causos e
ouvindo histórias, algumas fantásticas, outras banais. O que nunca falta é
gente pra conversar durante o verão. Quando termina o rodízio de vizinhos e
conhecidos ele bota o banco nas costas e volta pra casa. A castanheira, então,
passa a ser dos passarinhos e de alguns morcegos perdidos...
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