segunda-feira, 9 de maio de 2016

Capítulo 5

















Na sombra da castanheira 

Em frente à casa do Véio tem uma castanheira. Com sua sombra acolhedora ela é parada obrigatória para quem caminha pelas ruas de terra sob o sol quente do litoral. Isso acaba até virando desculpa pra todo mundo se encostar ali e ouvir as histórias do Véio. Munido do seu banquinho de madeira ele se ajeita assim como quem não quer nada a não ser esperar o tempo passar. Sentado num pequeno banco de madeira ele vigia as crianças enquanto elas brincam, cumprimenta os vizinhos que passam de volta da praia e é claro, proseia com aqueles que param. Os assuntos são os mais variados. Quando percebe que a conversa vai tomando corpo e mais pessoas vão se aproximando ele corre até a sala e volta com um banco maior, daqueles que antigamente acomodavam os famosos televisinhos. As pessoas chegam, sentam-se e puxam conversa. Os mais apressados dão lugar a outros num rodízio sereno, enquanto alguns fincam a bunda na madeira e dali só saem tarde da noite. 

Naquela tarde, ele e a Jacira, a irmã do Gigante, travavam uma conversa familiar cujo tema era a geladeira quebrada e a hipótese de não se efetuar o conserto a tempo para a ceia de Natal. Justamente quando o Véio estava dizendo para ela deixar a geladeira por conta do Ferrugem, chegaram Susana e o Paulista. Veterana na arte de pegar o fio da meada em qualquer conversa, Susana já chegou tomando parte na discussão.

- Geladeira enferrujada, Jacira? Maresia... 

- Que maresia, que enferrujada, mulher? 

- Por que esse espanto, Véio? Não foi você mesmo que falou que a geladeira dela está enferrujada? Está ficando doido?

- Filhinha do céu, eu estava falando do Ferrugem, um amigo nosso que é técnico, conserta televisão, rádio, fogão, geladeira, tudo... A gente chama ele assim por causa que ele tem uma carinha desbotada, de tanto tomar sol.

- Quer dizer que você está aí todo folgado só porque sua mulher está viajando? - Pergunta Susana, com aquele jeito que só ela tem de mudar de assunto instantaneamente - Já arrumou a casa? Amanhã cedinho ela chega e se tiver tudo bagunçado o couro vai comer, que eu sei que ela é brava...

- Ela tem o jeito dela de arrumar, se eu fizer do meu jeito quando ela chegar ela desfaz tudo e faz do jeito dela! Aí são dois trabalhos. Outro dia ela tava fazendo um serviço que não precisava... Pra quê apanhar lenha se o fogão da gente é a gás?! Ela é muito trabalhadeira, é verdade, só que ela não para nunca. Quando não tem mais serviço, ela inventa. Eu ajudo no que tem precisão, se não tem necessidade pra quê o trabalho?!

Alheios à conversa, os meninos brincam animados. Valtinho e Caíque, netos do Véio, mais o Edinho, neto da Jacira manuseiam plantas, vidros e pedras. Guilherme, filho do Paulista, e Rafael, outro neto do Véio, puxam carrinhos de plásticos presos com barbantes. Logo o Véio trata de botar reparo na brincadeira dos netos. Com uma pedra eles amassam um punhado de flores apanhadas no quintal. Depois de bem amassadas eles jogam a pasta obtida dentro de um vidro grande cheio de água.

- Que é que vocês tão fazendo aí, Caíque?

- Um remédio.

- Remédio pra quê?

- Não sei...

- Ué, se não sabe, pra que está tendo todo esse trabalho? Olha só, gente, tem dia que eles passam a tarde toda fazendo esses remédios. Diz que é pra matar formiga, marimbondo... Têm um trabalho danado, depois jogam tudo fora. Bicho engraçado é menino, olha ali aqueles dois brincando com aqueles carrinhos velhos, passando com eles nas poças d’água. Óia só que felicidade! Depois que os brinquedos ficam velhos aí é que eles agarram a brincar com gosto...

Satisfeito, o Paulista observa seu filho feliz, pisando na lama. Nem parece aquele menino que chegou de São Paulo com receio de andar descalço, correndo de cabeça baixa, machucando os pezinhos nas pedrinhas da rua. Pensando por esse lado, até que não foi um mau negócio pra ele.

- Véio, que formigas são essas aí embaixo do seu pé? – pergunta a mulher do Paulista. 

- São paraguaia...

- Paraguaia? Por quê?

- Porque elas não morde não...

- Mas aquelas que ficam ali na grama mordem sim. Outro dia pegaram o pé do Guilherme, ainda bem que eu estava com a mangueira e joguei água nelas. Aquelas lá são formiga quente.

- Isso mesmo, essas quente aí são brava, morde que só...

- Tem cobra nesse mato, Véio?

- Aí tem a druminhoca, tudo quietinha, por trás da moita, esperando você passar, armando o bote. Se ela não te pegar na ida, pega na volta. Quanta gente já foi picada aí nesse mato, sem nem perceber!

- E o veneno dela mata?

- Depende. Se o sujeito não ver, ele sente só um formigão na pernas e nem faz causo, no dia seguinte já está melhor. Agora, se o sujeito vê a druminhoca picando ele, logo ele se apavora e faz o sangue correr mais rápido nas veias e se espalhar no corpo. Se não for acudido rápido pode morrer sim.

- Está vendo, gordinho, por isso eu vivo falando pro Guilherme não entrar no mato! Nossa, mas tem muito bicho aqui, né Véio? Por que tinha que juntar tanto bicho dentro de casa? É taruíra, esperança, besouro, barata... Eu tenho horror de barata!

- Mas uma mulherona dessas com medo duns bichinhos que não faz mal nenhum!

- O que eu não suporto mesmo é barata, bicho nojento!

- Filhinha de Deus, você não tem vergonha de ter um medo tão grande desses?

- Vergonha por quê? Me diz se o senhor conhece alguma mulher que não tem pavor de barata? 

- Você sabia que por aqui tem muito morcego? Aí mesmo na casa de vocês costumava dá muito, eles faziam ninho aí. Ronaldo ficava doido, metia o pau pra riba deles... Vez em quando descia cada um bitelão voando louco pelo vão da parede. Vocês sabem que os morcegos sai tudo de noite por essas mata aí pra comer? Eles gostam que só vendo de comer umas frutinhas que dá aí por dentro. Antes de amanhecer eles voltam tudo pros teto das casa aqui e passa o dia dormindo, tudinho de ponta cabeça, dormindo e cagando todas as frutinhas que eles comeram. O chão fica uma porcaiada danada. Agora acabou, não sei o que o Ronaldo fez, mas eles não apareceram mais por aqui.


A conversa continua pela tarde afora, Susana lembra que é noite de lua cheia e chama o filho pra ir ver a lua nascer lá na praia. A molecada toda vai trás como numa procissão. O Véio continua sentado no banco proseando, contando seus causos e ouvindo histórias, algumas fantásticas, outras banais. O que nunca falta é gente pra conversar durante o verão. Quando termina o rodízio de vizinhos e conhecidos ele bota o banco nas costas e volta pra casa. A castanheira, então, passa a ser dos passarinhos e de alguns morcegos perdidos...

Nenhum comentário: