segunda-feira, 9 de maio de 2016

Capítulo 10


















Coincidências

Sábado à noite. O Paulista caminha por um corredor escuro, seguindo o muro que faz divisa com a casa de Marquinhos, primo de Rosinha, rumo aos fundos da casa de Aristides. De um lado do muro estão Leonel, Aristides e o Tenente; do outro, Marquinhos, sustentando seus cento e tantos quilos com o joelho apoiado num banquinho, trajando apenas um pequeníssimo calção branco perdido no corpanzil volumoso. Aristides, como sempre, veste só o calção preto do Vasco; Leonel, uma camiseta regata e bermuda e o Tenente - que é tenente de verdade - uma listradíssima camiseta do Fluminense. O Paulista cumprimenta todos, mas quando se aproxima de Aristides solta um berro:

- Uma barata!

Aristides dá um pulo pra trás e por pouco não cai de costas. 

- Ô Paulista... – intervém o Tenente - não brinca com isso, esse homem aí tem pavor de barata. Precisava vê ele no quartel, no tempo que era militar, tentando disfarçar o medo das baratinhas.

- Que medo porra nenhuma! Eu tenho é nojo! E presta atenção, hein, que coisa que mais me perturba do que barata é susto!

- Aristides foi militar? – pergunta o Paulista.

- Você não sabia? Ele serviu na minha turma. Eu continuei e ele saiu. Nós ficamos mais de vinte anos sem se ver...

- E você sabe – entra no papo de novo o Aristides, já refeito do susto – que a gente veio se encontrar há três anos, por acaso, lá em Minas? Na pura coincidência! 

- Coincidência maior do que essa – entra na conversa o Marquinhos – só a da morte do seu Galvão Pé de Pato, está lembrado Leonel?

- E como! Cachoeiro inteira lembra disso. Só que aí foi uma coincidência triste.

- Como é que foi? – pergunta o Paulista.

- Foi ali pertinho da rodoviária. O Galvão estava entrando na cidade dirigindo uma caminhonete branca. Naquela época não tinha quase nada por ali, só uma pedreira antiga quase sem pedra. Uma vez por dia eles pocavam o morro com dinamite. Como o lugar era deserto nunca aconteceu nenhum acidente. E não é que naquele dia o funcionário encarregado de pocar as pedras botou dinamite a mais e tascou fogo. Rapaz! O pipoco foi violento! Jogou pedra pra todo lado e uma delas, só uma, voou mais longe do que as outras e caiu exatamente em cima da caminhonete, bem em cima da cabeça do Galvão. Morreu na Hora!

- Vocês estão lembrados daquela vaca lá de São Paulo que estava exatamente na rota daquele Folker 100 da TAM, que caiu lá no interior? – pergunta Aristides - agora, vocês pensam só como é que é essa vida... Imagina só qual a chance de uma vaca ficar exatamente na rota de um avião, e o pior, de um avião caindo! A bichinha estava lá pastando tranquila, sozinha num raio de mais de cem metros e aquele avião não vem e se esborracha todinho em cima da coitadinha! E o pior não é isso, o pior é a coincidência dos dois se encontrarem ali naquele segundinho. O que podia passar na cabeça da vaca? Que ela podia ser atropelada por um trator, um caminhão de boia fria, qualquer coisa, menos por um avião.

- É, a vida tem dessas coisas – filosofa o Tenente.

- E um dia lá em Vitória – se entusiasma Leonel - estávamos eu e meu cunhado num quiosque na beira da praia. Caía uma chuvinha fininha e juntou gente pra se proteger da chuva. De repente tocou o celular de um senhor que estava do lado da gente. Ele atendeu: “Alô! Quem fala? Marcão? É você mesmo, cara? Há quanto tempo que a gente não se vê! Diz aí, você está aonde? O quê? Em Vitória?! Uai, mas que coincidência! Eu também! Estou louco pra te ver, rapaz! Fala aí, meu irmão, que lugar de Vitória você está? No posto 7?” - O homem fica de costas pra outro homem, também com celular, falando alto e tentando ouvir. “Isso mesmo, no posto 7!” “Como? Você também está no posto 7? Que lugar, rapaz? Um quiosque de concreto com umas mesinhas e um balcão no centro? Gozado, eu também estou num quiosque igual. Peraí, esse quiosque está de frente de um prédio marrom, com sacadas bonitas? É mesmo? Que coincidência, deixa eu ver.” - Viram-se para trás e, de repente, dão de cara um com o outro. Quando se olham frente a frente, guardam os celulares e se abraçam com força, quase se beijam. Nós dois só espiando. Quando a gente conta todo mundo pensa que é invenção nossa, mas é verdade.

- Agora escuta só essa! – se anima o Paulista – Vocês sabem que a Suécia é o país que tem um dos mais baixos índices de criminalidade do mundo? Pois é, eu trabalhava numa empresa sueca que tem fábricas em todos os continentes. Há uns quatro anos eu fiquei sabendo de um sueco que trabalhava num escritório em um país africano que vivia constantemente em guerra civil. Ele trabalhava lá fazia cinco anos e estava doido pra cair fora, não importava pra onde fosse. Já tinha passado tudo quanto é situação de perigo e nada de sair de lá. Quando estava perdendo as esperanças foi chamado de volta pra Suécia. O cara ficou maravilhado, não imaginava mais que pudesse sair daquele inferno, quanto mais voltar pra casa. No primeiro dia de trabalho ele estava caminhando tranquilamente para o escritório e, de repente, aparece um cara não se sabe de onde com um martelo na mão na mesma calçada dele. Quando passa por ele o cara, sem mais nem menos, dá uma martelada na cabeça do sueco e sai correndo. O sueco morreu na hora! O cara passou quase cinco anos entre tiros e explosões, na África, e foi morrer com uma martelada, na Suécia. É mole?

- Bom – continua Aristides – então ouve só essa. Eu trabalhava na Itapemirim e fiquei um par de tempo em São Paulo. Sozinho, quer dizer, eu e o Mirinho, lembra dele Leonel?

- Mirinho? Aquele baixinho e narigudo, feio que dói?

- O próprio.

- Não era aquele que morreu sentado na poltrona do ônibus? – pergunta Marquinhos.

- Esse mesmo, mas essa aí é outra história. A que eu quero contar é a da nossa viagem que não aconteceu. Todo fim de semana eu e o Mirinho voltávamos pra Cachoeiro no ônibus da Expresso Brasileiro até o Rio de Janeiro e de lá a gente pegava outro, da Itapemirim, pra Cachoeiro. Pois é, uma noite a gente já estava com as passagens compradas e fomos pra rodoviária embarcar. Quando chegamos lá, eu não sei por causa de que, cismei que não ia naquele ônibus. O Mirinho achou estranho e quis saber por que eu tinha cismado com o ônibus. “Aristides, que está havendo? Qual o problema de viajar nesse ônibus? A gente faz essa viagem toda semana. Sai daqui meia-noite, seis da manhã está no Rio e antes de meio-dia já está em casa...” “Não sei, Mirinho, nem me pergunta por que. Só sei que não entro nesse ônibus nem amarrado. A gente pode vender a passagem e pegar outro amanhã cedo. Se você quiser ir pode ficar à vontade, mas eu não ponho o pé nesse ônibus.” Vendo que não tinha como me convencer a voltar atrás, ele acabou desistindo de embarcar. Vendemos as passagens pra dois moreninhos que estavam querendo apanhar o primeiro ônibus que tivesse. Chegamos no hotel, tomamos uma ducha e fomos dormir. Quatro horas da manhã a gente é acordado no susto por um senhor português que era o encarregado de comprar todas as passagens dos funcionários da Itapemirim. Ele estava esbaforido de tanto correr, tinha ido até um botequinho a umas duas quadras do hotel, tomar um cafezinho e ouviu no rádio a notícia de um ônibus da Expresso Brasileiro que tinha batido num caminhão, na Via Dutra. Pelas informações ele percebeu que era o ônibus que a gente teria que ter embarcado. Mais de vinte mortos! O português estava no corredor do hotel aos berros. “Seu Aristides mureu! Seu Aristides mureu!” Assustado com aquela barulhada toda eu abri a porta e saí pra fora, só de cuecas. Quando o português me viu, se atracou comigo de felicidade. “O senhor está vivo! Graças a Deus, o senhor está vivo!” Logo atrás de mim saiu o Mirinho, enrolado numa toalha, só com aquela cara e aquele nariz feios dele pra fora. À medida que o português ia detalhando a história, o Mirinho ia ficando branco que nem toalha. Mal o português me largou e o Mirinho é que pulou em cima de mim aos prantos: “Você salvou minha vida! Salvou minha vida!”.

– E não foi o Mirinho que morreu sentado do lado do Jair, filho da Dona Leocádia lá da Gironda? 

- Ele mesmo. Eles estavam voltando de São Paulo e o ônibus parou numa dessas cidadezinhas aí do estado do Rio. Ele desceu pra tomar um café e o Mirinho ficou dormindo. Quando ele voltou pro banco o Mirinho continuava dormindo. Dormiu a viagem inteira, até chegarem Cachoeiro. O Jair desceu pra pegar as malas e nada do Mirinho sair de dentro do ônibus. Ele foi até a poltrona e o Mirinho continuava sentado, com a cabeça encostada no assento, olhando pra frente. O Jair cutucou ele três vezes e nada. Na quarta ele viu que Mirinho estava mortinho.

- Você foi no enterro dele? – perguntou Marquinhos.

- Mas é claro, enterro só não, fui no velório também. Chegamos cedo, eu e o Ademar. O cara da funerária estava tendo um trabalho danado pra ajeitar o Mirinho no caixão por causa do nariz grande dele. O homem tirou aquele travesseirinho que fica por baixo da cabeça e não adiantou nada, o caixão não fechava. Dali um bocadinho ele olhou pra um lado, olhou pro outro e... Crack! Torceu o pescoço dele pro lado direito até ajeitar a cabeça e fechar o caixão.

Já ia perto de meia-noite, nenhum movimento mais se via na rua de terra, repleta de poças da chuva da madrugada anterior. Alguns morcegos passaram voando, fizeram um pouso de emergência na castanheira do Véio. Uma coruja piou atrás da casa do Aristides e assustou os morcegos. O barulho das suas asas trouxe um súbito calafrio na tranquilidade do Juá.

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