segunda-feira, 9 de maio de 2016

Capítulo 8

















O clone

Aristides é do tipo gozador, daqueles que perdem o amigo, mas não perdem a piada. Sabe tudo da vida de todo mundo e sempre encontra um tempinho pra gozar alguém e falar da vida alheia. Adora ligar para os amigos como se fosse outra pessoa, só pra sacanear. Não sossega enquanto não descobre alguém parecido com outro alguém e quando isso acontece, não deixa o infeliz em paz. 

Nunca teve o hábito de frequentar Marataízes, porém, no verão de 99, alugou uma casa ao lado do sobrado amarelo e trouxe a família de férias. Gostou tanto que agora vem todo ano.
Neste verão a família chegou primeiro, num sábado à tarde, deixando todos curiosos pela sua ausência. Sueli, a mulher, dizia apenas que não nasceu grudada nele. Passaram a tarde toda limpando a casa, lavando a varanda, aparando a grama do quintal. Dona Rosinha, quando soube da chegada da família ficou excitadíssima, porque estava louca pra aprontar alguma pra cima dele. Da varanda, procurou, procurou... como não viu nem sombra dele, sossegou e foi tirar a sua pestaninha da tarde. 

Acontece que o Aristides estava meio ressabiado com a Dona Rosinha, consciente que havia exagerado na última brincadeira e, como não é bobo nem nada, tinha certeza que ela estava ávida para dar o troco. Sendo assim, tratou de chegar como se não tivesse chegado, quer dizer, entrou na casa enrustido.

No domingo de manhã foram todos à praia, menos ele. Dona Rosinha já estava lá de plantão, discreta como sempre, debaixo da sua barraca roxa e amarela; biquíni vermelho na parte de cima, azul e amarelo na parte de baixo, deixando à mostra a gama de gordurinhas proeminentes; óculos escuros de camelô com hastes de borracha amarela; bolsa e chapéu de palha e sandálias havaianas roxas com tiras amarelas. Lia tranquilamente seu best-seller e tragava um cigarro delicadamente manchado na ponta pelo batom vermelho berrante. Ficou toda assanhada ao ver a família do Aristides se aproximando.

- E Aristides? Não vem?

- Ainda não – respondeu Maurício, futuro genro do Aristides.

- Virá? 

- Papai? – tomou a palavra a futura esposa do futuro genro - É ruim, hein! Papai está todo entrevado! 

- Ué, por quê? O que houve com ele?

- Caiu ontem limpando a casa. Quase bate a cabeça na quina da mesa. Foi Deus quem ajudou, já pensou se ele bate a cabeça?

- Quer dizer então que o Aristides estava aí ontem?

- É... – responde a filha meio sem graça, percebendo a mancada.

- E por que motivo ele está se escondendo? 

- Sei não, Dona Rosinha, a senhora conhece papai, sabe que ele tem esses lances. Deve ser alguma bobagem. Bom, de qualquer maneira, agora é que ele não sai de casa mesmo.

- Está feia a coisa, é?

- Ele está todo duro, da cintura pra cima não mexe nada.

Conversa vai, conversa vem e a praia enchendo. A criançada do Véio chegou correndo, pisando a areia quente e caiu na água. Chegaram também a mulher do Paulista com o filho e a cunhada, logo depois o Paulista. Sueli, a mulher do Aristides foi a última a aparecer. 

Juntaram as barracas e o papo ficou mais animado. A notícia da queda do Aristides se espalhou mais rápido que o vento nordeste. Sem esperar perguntas a mulher dele foi logo dizendo que a coisa não estava tão feia como ele pintava, nada que uma boa pomada e um japonês treinado não resolvesse. Quando estavam no auge das gargalhadas foi que a mulher do Paulista avistou saindo da água uma figura conhecida. Espantada, ela perguntou: 

- Olha ali, não é o Aristides?

Todos olharam ao mesmo tempo e mantiveram os olhares pasmos por longos segundos. 

- Caraca! Se eu não soubesse que o papai está em casa, eu podia jurar que era ele.

- Não é ele? – pergunta Susana, admirada.

- É nada, minha filha – responde Sueli – Aquele eu conheço de qualquer distância, de costas, de frente, de lado. Agora, que engana, engana.

- Engana é o cacete! – completou Dona Rosinha, na sua polidez costumeira - É ele cagado e escarrado! Vai alguém lá perto, como quem não quer nada, só pra não dizer que eu estou sonhando.

Maurício puxa a namorada pelo braço e vão caminhando na direção do homem. Passam uma, duas, três vezes, discretamente, na frente da barraca do estranho. Voltam mais rápido do que foram. 

- É um clone do Aristides! – Sentencia o futuro genro. 

Dona Rosinha cai na gargalhada, misturando risada com tosse. Quando consegue falar, solta entre risinhos:

- Tirando o nariz que é mais fino e o pouco pelo no corpo, é o próprio. Pena que ele não está aqui pra ver...

- Não estava – diz o Paulista.

Todos se viram e veem Aristides andando todo duro, com o peito pra frente e a barriga encolhida, carregando com dificuldade uma cadeira de praia. Vem na direção deles, pescoço parado, olhando fixamente pra frente. O vento sopra os cabelos do peito e o sol reflete-se nos óculos escuros. O calção preto do Vasco destaca-se em meio à vegetação baixa. Chega, cumprimenta todos num tom azedo e arma a cadeira da melhor maneira que pode. O único lugar vago, pra seu azar, é justamente ao lado de Rosinha.

- E aí, Aristides, virou moda vir pra Marataízes escondido?

- Escondido coisa nenhuma. Será que o sujeito, depois que passa dos quarenta, não tem direito a um mínimo de privacidade?

- Deixa de conversa, rapaz! Pra você ver como Deus é justo, foi só você tentar se esconder da gente que tomou uma queda feia, quase se poca todo no chão.

- Menina, mas eu tive muita sorte! Por um tantinho assim ó, não tampei a cabeça na quina da mesa! ... - Doer, até que não dói, agora, da cintura pra cima eu estou entrevado, não mexo nada! O pescoço então, nem se fala. Pra olhar pro lado eu tenho que virar o corpo todo...

- E está difícil virar? 

- Com cuidado não.

- Então olha ali.

- Ali onde? – vira o corpo com certa dificuldade.

- Ali, homem, olha só aquele cidadão de bermudão azul. Espia só, não te lembra alguém?

Aristides parece não entender nada; mas, como não é bobo, pressente uma pontinha de sacanagem na observação de Rosinha. Fingi não entender.

- Aquele homem ali? Qué que tem? - examina o sósia de cima a baixo. Percebe que já foi pego e que o pior a fazer é tentar pocar fora.

- Pois eu acho que você está dando uma de desentendido, se até sua mulher e sua filha já se enganaram pensando que você tinha vindo pra praia antes delas. Fala a verdade, você tinha um clone enrustido e não contou nada pra gente, né verdade?

- Mas será que eu sou tão feio assim?

- Eu, particularmente, acho que você está mais em forma do que ele. – agita o Paulista – Aquele barrigão branco, sem pelo, está meio indecente. A sua pelo menos está mais bronzeada e, com todo esse pelo, disfarça melhor.

- Cê tá querendo me sacanear também, Paulista? 

- Fala a verdade, Aristides – volta à carga Rosinha – você já conhece o homem, é ou não é?

- Eu sei lá de homem nenhum! Vê se eu vou ficar observando homem na praia!

- Papai gosta de fazer de conta que não sabe das coisas.

- É isso mesmo – complementa Rosinha - seu pai é cheio de sair pela tangente. Mas eu sei que ele conhece tudo que é gente de Cachoeiro e daquelas cidadezinhas aqui do sul do Espírito Santo.

- Essa figura aí eu não conheço... e também não tenho a mínima vontade de conhecer!

- Qué isso, homem? Que indelicadeza é essa? Eu acho que vocês tinham mais é que se conhecer.

- Deixa isso quieto, Rosinha.

- Aliás, eu acho que a gente não podia perder essa chance, os dois estão aqui mesmo.

- Você não teria essa coragem.

- Como não, é só ele dar uma chance. - Rosinha acena para o homem, sob o olhar indignado de Aristides.

- Meu senhor, por favor, o senhor poderia chegar aqui um momentinho.

- Pois não, minha senhora! - Todos se ajeitam nas cadeiras e esteiras. O homem caminha lentamente, corpo todo molhado, cabelo escorrido.

- O senhor não leve a mal, nós estamos aqui rindo muito, mas não é do senhor não. É que nós percebemos que o senhor é extremamente parecido com nosso amigo aqui, o Aristides.

- De fato, só que ele é mais bonito que eu.

- Bondade sua. – entra no jogo o Aristides.

- Meu nome é Rosinha, trabalho na prefeitura de Cachoeiro. Isso aqui é tudo parentes e amigos. Como eu falei, o senhor não leve a mal, mas é que todos nós achamos uma parecença muito grande do senhor com o Aristides e ficamos curiosos. Qual a sua graça?

- Juvenal.

- Pois então, seu Juvenal, se junta aí com a gente.

- Só um momentinho, deixa eu pegar minha cadeira.

- Filha da puta! – sussurra o Aristides pra Rosinha, assim que o homem sai.

- Pois eu estou adorando. – responde ela, matreira.

O homem volta e senta-se ao lado do Aristides. A galera toda acompanha entusiasmada, segurando os risinhos.

- O senhor é da onde, seu Juvenal? – pergunta Rosinha.

- De Castelo. Minha família é toda de lá.

- Você não tem parente em Castelo, Aristides?

- Não, nunca tive, dona Rosinha. O que o senhor faz lá, seu Juvenal?

- Sou funcionário público, escrivão.

- E em que repartição o senhor trabalha? – pergunta Rosinha, animada.

- Na delegacia.

- É mesmo? Deve acontecer muita coisa por lá pra manter o senhor ocupado, não é mesmo?

– continua Rosinha, satisfeita com o rumo da conversa.

- A senhora nem imagina. Sabe que uma vez...

Para desespero do Aristides o homem começa a desfiar uma infinidade de histórias enfadonhas dos autos da Justiça de Castelo. Quanto mais ele se desespera, mais satisfeita fica Rosinha. Quando se esgota o rol de casos judiciais do seu Juvenal, o próprio acha melhor se retirar. Despede-se educadamente, com especial atenção ao Aristides, com quem teve uma empatia imediata. Diz que sempre está por ali e que seria um prazer encontrá-lo para se conhecerem melhor e coisa e tal.

Desnecessário dizer a agitação em volta do Aristides depois que o homem se recolheu. Ele, coitado, mal podendo se virar pro lado, mira Rosinha com o canto dos olhos.

- Vai ter troco! ...

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