O clone
Aristides é do tipo gozador, daqueles que perdem o amigo, mas não perdem
a piada. Sabe tudo da vida de todo mundo e sempre encontra um tempinho pra
gozar alguém e falar da vida alheia. Adora ligar para os amigos como se fosse
outra pessoa, só pra sacanear. Não sossega enquanto não descobre alguém
parecido com outro alguém e quando isso acontece, não deixa o infeliz em
paz.
Nunca teve o hábito de frequentar Marataízes, porém, no verão de 99, alugou uma casa ao lado do sobrado amarelo e trouxe a família de férias. Gostou tanto que agora vem todo ano.
Neste verão
a família chegou primeiro, num sábado à tarde, deixando todos curiosos pela sua
ausência. Sueli, a mulher, dizia apenas que não nasceu grudada nele. Passaram a
tarde toda limpando a casa, lavando a varanda, aparando a grama do quintal.
Dona Rosinha, quando soube da chegada da família ficou excitadíssima, porque
estava louca pra aprontar alguma pra cima dele. Da varanda, procurou, procurou...
como não viu nem sombra dele, sossegou e foi tirar a sua pestaninha da
tarde.
Acontece que
o Aristides estava meio ressabiado com a Dona Rosinha, consciente que havia
exagerado na última brincadeira e, como não é bobo nem nada, tinha certeza que
ela estava ávida para dar o troco. Sendo assim, tratou de chegar como se não
tivesse chegado, quer dizer, entrou na casa enrustido.
No domingo
de manhã foram todos à praia, menos ele. Dona Rosinha já estava lá de plantão,
discreta como sempre, debaixo da sua barraca roxa e amarela; biquíni vermelho
na parte de cima, azul e amarelo na parte de baixo, deixando à mostra a gama de
gordurinhas proeminentes; óculos escuros de camelô com hastes de borracha
amarela; bolsa e chapéu de palha e sandálias havaianas roxas com tiras
amarelas. Lia tranquilamente seu best-seller e tragava um cigarro delicadamente
manchado na ponta pelo batom vermelho berrante. Ficou toda assanhada ao ver a
família do Aristides se aproximando.
- E
Aristides? Não vem?
- Ainda não
– respondeu Maurício, futuro genro do Aristides.
-
Virá?
- Papai? –
tomou a palavra a futura esposa do futuro genro - É ruim, hein! Papai está todo
entrevado!
- Ué, por
quê? O que houve com ele?
- Caiu ontem
limpando a casa. Quase bate a cabeça na quina da mesa. Foi Deus quem ajudou, já
pensou se ele bate a cabeça?
- Quer dizer
então que o Aristides estava aí ontem?
-
É... – responde a filha meio sem graça, percebendo a mancada.
- E por que
motivo ele está se escondendo?
- Sei não,
Dona Rosinha, a senhora conhece papai, sabe que ele tem esses lances. Deve ser
alguma bobagem. Bom, de qualquer maneira, agora é que ele não sai de casa
mesmo.
- Está feia
a coisa, é?
- Ele está
todo duro, da cintura pra cima não mexe nada.
Conversa
vai, conversa vem e a praia enchendo. A criançada do Véio chegou correndo,
pisando a areia quente e caiu na água. Chegaram também a mulher do
Paulista com o filho e a cunhada, logo depois o Paulista. Sueli, a mulher do
Aristides foi a última a aparecer.
Juntaram as barracas
e o papo ficou mais animado. A notícia da queda do Aristides se espalhou mais
rápido que o vento nordeste. Sem esperar perguntas a mulher dele foi logo
dizendo que a coisa não estava tão feia como ele pintava, nada que uma boa
pomada e um japonês treinado não resolvesse. Quando estavam no auge das
gargalhadas foi que a mulher do Paulista avistou saindo da água uma figura
conhecida. Espantada, ela perguntou:
- Olha ali,
não é o Aristides?
Todos
olharam ao mesmo tempo e mantiveram os olhares pasmos por longos
segundos.
-
Caraca! Se eu não soubesse que o papai está em casa, eu podia jurar que
era ele.
- Não é ele?
– pergunta Susana, admirada.
- É nada,
minha filha – responde Sueli – Aquele eu conheço de qualquer distância, de
costas, de frente, de lado. Agora, que engana, engana.
- Engana é o
cacete! – completou Dona Rosinha, na sua polidez costumeira - É ele cagado e
escarrado! Vai alguém lá perto, como quem não quer nada, só pra não dizer que
eu estou sonhando.
Maurício
puxa a namorada pelo braço e vão caminhando na direção do homem. Passam uma,
duas, três vezes, discretamente, na frente da barraca do estranho. Voltam mais
rápido do que foram.
- É um clone
do Aristides! – Sentencia o futuro genro.
Dona Rosinha
cai na gargalhada, misturando risada com tosse. Quando consegue falar, solta
entre risinhos:
- Tirando o
nariz que é mais fino e o pouco pelo no corpo, é o próprio. Pena que ele não
está aqui pra ver...
- Não estava
– diz o Paulista.
Todos se
viram e veem Aristides andando todo duro, com o peito pra frente e a barriga
encolhida, carregando com dificuldade uma cadeira de praia. Vem na direção
deles, pescoço parado, olhando fixamente pra frente. O vento sopra os cabelos
do peito e o sol reflete-se nos óculos escuros. O calção preto do Vasco
destaca-se em meio à vegetação baixa. Chega, cumprimenta todos num tom azedo e
arma a cadeira da melhor maneira que pode. O único lugar vago, pra seu azar, é
justamente ao lado de Rosinha.
- E aí,
Aristides, virou moda vir pra Marataízes escondido?
- Escondido
coisa nenhuma. Será que o sujeito, depois que passa dos quarenta, não tem
direito a um mínimo de privacidade?
- Deixa de
conversa, rapaz! Pra você ver como Deus é justo, foi só você tentar se esconder
da gente que tomou uma queda feia, quase se poca todo no chão.
- Menina,
mas eu tive muita sorte! Por um tantinho assim ó, não tampei a cabeça na quina
da mesa! ... - Doer, até que não dói, agora, da cintura pra cima eu estou
entrevado, não mexo nada! O pescoço então, nem se fala. Pra olhar pro lado eu
tenho que virar o corpo todo...
- E está
difícil virar?
- Com
cuidado não.
- Então olha
ali.
- Ali onde?
– vira o corpo com certa dificuldade.
- Ali,
homem, olha só aquele cidadão de bermudão azul. Espia só, não te lembra alguém?
Aristides
parece não entender nada; mas, como não é bobo, pressente uma pontinha de
sacanagem na observação de Rosinha. Fingi não entender.
- Aquele
homem ali? Qué que tem? - examina o sósia de cima a baixo. Percebe que já
foi pego e que o pior a fazer é tentar pocar fora.
- Pois eu
acho que você está dando uma de desentendido, se até sua mulher e sua filha já
se enganaram pensando que você tinha vindo pra praia antes delas. Fala a
verdade, você tinha um clone enrustido e não contou nada pra gente, né verdade?
- Mas será
que eu sou tão feio assim?
- Eu,
particularmente, acho que você está mais em forma do que ele. – agita o
Paulista – Aquele barrigão branco, sem pelo, está meio indecente. A sua pelo
menos está mais bronzeada e, com todo esse pelo, disfarça melhor.
- Cê tá
querendo me sacanear também, Paulista?
- Fala a
verdade, Aristides – volta à carga Rosinha – você já conhece o homem, é ou não
é?
- Eu sei lá
de homem nenhum! Vê se eu vou ficar observando homem na praia!
- Papai
gosta de fazer de conta que não sabe das coisas.
- É isso
mesmo – complementa Rosinha - seu pai é cheio de sair pela tangente. Mas
eu sei que ele conhece tudo que é gente de Cachoeiro e daquelas cidadezinhas
aqui do sul do Espírito Santo.
- Essa
figura aí eu não conheço... e também não tenho a mínima vontade de conhecer!
- Qué isso,
homem? Que indelicadeza é essa? Eu acho que vocês tinham mais é que se
conhecer.
- Deixa isso
quieto, Rosinha.
- Aliás, eu
acho que a gente não podia perder essa chance, os dois estão aqui mesmo.
- Você não
teria essa coragem.
- Como não,
é só ele dar uma chance. - Rosinha acena para o homem, sob o olhar indignado de
Aristides.
- Meu
senhor, por favor, o senhor poderia chegar aqui um momentinho.
- Pois não,
minha senhora! - Todos se ajeitam nas cadeiras e esteiras. O homem caminha
lentamente, corpo todo molhado, cabelo escorrido.
- O senhor
não leve a mal, nós estamos aqui rindo muito, mas não é do senhor não. É que
nós percebemos que o senhor é extremamente parecido com nosso amigo aqui, o
Aristides.
- De fato,
só que ele é mais bonito que eu.
- Bondade
sua. – entra no jogo o Aristides.
- Meu nome é
Rosinha, trabalho na prefeitura de Cachoeiro. Isso aqui é tudo parentes e
amigos. Como eu falei, o senhor não leve a mal, mas é que todos nós achamos uma
parecença muito grande do senhor com o Aristides e ficamos curiosos. Qual a sua
graça?
- Juvenal.
- Pois então,
seu Juvenal, se junta aí com a gente.
- Só um
momentinho, deixa eu pegar minha cadeira.
- Filha da
puta! – sussurra o Aristides pra Rosinha, assim que o homem sai.
- Pois eu
estou adorando. – responde ela, matreira.
O homem
volta e senta-se ao lado do Aristides. A galera toda acompanha entusiasmada,
segurando os risinhos.
- O senhor é
da onde, seu Juvenal? – pergunta Rosinha.
- De
Castelo. Minha família é toda de lá.
- Você não
tem parente em Castelo, Aristides?
- Não, nunca
tive, dona Rosinha. O que o senhor faz lá, seu Juvenal?
- Sou
funcionário público, escrivão.
- E em que
repartição o senhor trabalha? – pergunta Rosinha, animada.
- Na
delegacia.
- É mesmo?
Deve acontecer muita coisa por lá pra manter o senhor ocupado, não é mesmo?
– continua
Rosinha, satisfeita com o rumo da conversa.
- A senhora
nem imagina. Sabe que uma vez...
Para
desespero do Aristides o homem começa a desfiar uma infinidade de histórias
enfadonhas dos autos da Justiça de Castelo. Quanto mais ele se desespera, mais
satisfeita fica Rosinha. Quando se esgota o rol de casos judiciais do seu
Juvenal, o próprio acha melhor se retirar. Despede-se educadamente, com
especial atenção ao Aristides, com quem teve uma empatia imediata. Diz que
sempre está por ali e que seria um prazer encontrá-lo para se conhecerem melhor
e coisa e tal.
Desnecessário
dizer a agitação em volta do Aristides depois que o homem se recolheu. Ele,
coitado, mal podendo se virar pro lado, mira Rosinha com o canto dos olhos.
- Vai ter troco!
...
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